Decifra o acarajé antes que ele te devore. Esse é um bom conselho para quem quer mergulhar nas contradições do tchan, do axé, do jeito, do cheiro que Salvador tem. E, antes de dar o braço à baiana do Pelourinho e sentir arrepios descendo e subindo ladeiras, lembre-se que historicamente é nesse pedaço de chão que tudo começa, antropologicamente se mistura e culturalmente se engrandece. O som dos berimbaus, os meninos que vendem fitinhas do Bonfim e os prédios coloniais formam a deslumbrante espuma numa praia que já era dos índios quando os portugueses atracaram. Antes de ser a primeira capital da colônia, ela já nascia com status de principal cidade do Atlântico Sul nos mapas das navegações. Só bem depois é que os negros chegam e marcam definitivamente a alma do lugar. Por isso, no aniversário dos 450 anos de fundação, completados em 29 de março, Salvador é uma espécie de convite para que os brasileiros se sacudam também da cintura para cima para entender o que se esconde no "nosso mito de origem", como Caetano Veloso a definiu.

Algumas coincidências aproximam a capital nacional de ontem e a de hoje. Salvador e Brasília foram construídas na metade do século, uma no XVI outra no XX. Ambas surgiram de uma decisão política de ocupação do território. E cada uma a seu tempo trouxe inovações em sua arquitetura. As semelhanças param por aí. "Tomé de Souza foi mais moderno que Lúcio Costa. Salvador obedeceu a uma tecnologia de ponta para a época. Ela incorporou a seu modelo medieval o porto. E era pelo mar que a cidade se articulava com o mundo", compara o historiador baiano Cid Teixeira. Salvador, conclui-se, foi desde o primeiro instante cosmopolita. "Não se tratava de um povoado que foi crescendo. A cidade já surge estruturada. Salvador não nasce de um passado, mas de um projeto de futuro que era construir o Brasil. Por isso desde o início, a influência internacional na realidade local está presente em Padre Vieira, Gregório de Mattos, cinema novo e a tropicália", analisa Antonio Risério, escritor e estudioso da cultura baiana e da música brasileira.

A Salvador de hoje carece da elaboração vanguardista de outros tempos. A ousadia foi substituída pelos milhões da chamada indústria do axé. Vale o mesmo que Caetano disse em Sampa: "é a força da grana que ergue e destrói coisas belas". A pujança desse mercado se concretiza numa cidade em que dos 2,3 milhões de habitantes só 50% vivem em moradias dignas e 42% dispõem de saneamento básico, segundo dados da própria prefeitura. Por outro lado, a Salvador dos turistas ganhou policiamento, iluminação e recolhimento diário de lixo. O Dique do Tororó, antes cercado de mato, tornou-se o novo cartão-postal. Enquanto estudantes redescobrem a cidade que está sendo restaurada, os turistas enlouquecem. Como no Pelourinho há sempre um pot-pourri do que se imagina ser Salvador – as baianas rendadas, as rodas de capoeira, os batuques –, os estrangeiros se agarram aos locais, trançam os cabelos e fotografam até a fumaça de vatapá. Os festejos dos 450 anos, acredita o prefeito Antonio Imbassahy, desperta a auto-estima do povo. "Temos uma beleza natural, um caráter forte da raça, da cultura, da religiosidade, da música e isso está em pauta", analisa. É contagiante, não há dúvida. Mancha de dendê não sai, como canta Moraes Moreira. Mas esse óleo lubrifica engrenagens mais sofisticadas. Queime a língua na pimenta e solte-se no tempo.

O rei dom João III nem alcançava a idéia de Salvador como capital do Brasil. Sua intenção era constituir uma base de sustentação à navegação ao sul do equador que viabilizasse o comércio na rota do Oriente. À revelia da limitação do dono do trono, gente e idéias do Velho Mundo desembarcavam por aqui e iam desenhando o território. Portugueses e índios que levantaram prédios começaram também a se reproduzir. Daí a inversão do casal-símbolo de formação: Diogo Álvares Correia, o português Caramuru, casar-se com Catarina, a tupinambá de nome luso. "Mulher portuguesa era algo raríssimo. Os colonizadores não traziam as famílias. Portanto essa mistura foi mais imposição da biologia que da sociologia", analisa Cid Teixeira.

Alma negra
Com o início do ciclo da cana-de-açúcar, a cidade passa a ser uma doca de exportação e aí sim se constitui como uma capital comercial. "Nos séculos XVI e XVII, Salvador já era a maior cidade européia fora da Europa", lembra Teixeira. Os canaviais trouxeram a fortuna e a mão-de-obra escrava para a Bahia. As igrejas banhadas a ouro, que hoje embalam as visitas e sustentam os guias de Salvador, saíam do bolso dos promissores comerciantes e do suor dos negros. E é bom que se diga que foram várias nações africanas que aportaram na região. Até o século XVII, o fluxo era de negros bantos, de Angola e do Congo. Foram eles que nos deixaram palavras como dendê, bunda, quiabo, samba, candomblé, macumba e umbanda. Só depois no século XVIII o tráfico se desloca para a baía de Benim, marcando a influência sudanesa, com os povos ewê-iorubá. Seria muito atrevimento mapear o que essa imigração forçada provocou na Bahia. Ter na cabeça essa origem múltipla, contudo, é um caminho para se entender a complexidade da formação da cidade mais negra do País, que vai além dos tambores do Olodum, do sincretismo religioso escancarado na lavagem de Oxalá na igreja do Bonfim e no exuberante tabuleiro da baiana. "Salvador se tornou um lugar mitificado. É claro que essa combinação faz de nossa cultura a mais expressiva das Américas, mas nem sempre essa mistura significa harmonia. A miscigenação não excluiu o racismo", alerta o antropólogo Jeferson Afonso Barcelar, diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais.

A vocação mercantil definiu como um raio o destino da capital baiana. Até hoje a cidade vive do turismo, do comércio e de serviços. "Aos 450 anos, Salvador é marcada pela desigualdade social e pelas altas taxas de desemprego", afirma o prefeito Antônio Imbassahy. Depois do reinado absoluto em quase todo o período do Brasil-Colônia, vários golpes abalaram a altivez da cidade como o declínio do açúcar e o surgimento do ouro e pedras de Minas Gerais. A transferência da capital para o Rio de Janeiro, em 1763, não só tirou-lhe o título como fechou-lhe as portas para o mundo. A corte juntou seus baús e foi embora, deixando a cidade num período autofágico, tendo como acervo o passado e desenvolvendo assim um processo civilizatório particular. Salvador nem se afrancesou nem perdeu a África de vista, como o Rio de Janeiro. "Esse processo não foi nem melhor nem pior que o resto do País, mas definitivamente outro", define Cid Teixeira.

Por "outro" entenda-se os símbolos da baianidade que resultaram desse passado e do caldeirão cultural. Entre eles, o rótulo que mais irrita os baianos é a fama de preguiçoso. Para tentar explicá-la pode-se remontar ao que os senhores chamavam de indolência dos escravos e que Jean-Paul Sartre cunhou de "sabotagem", uma vez que nenhum ser humano suporta com alegria ralar de sol a sol sem recompensa ou reconhecimento. "A leitura tradicional de que os negros não gostavam de trabalhar somou-se ao que Oswald de Andrade já falava da nossa ‘sábia preguiça solar’. Isso é cultivado como mais um mito baiano que se contrapõe à pressa dos paulistas", analisa Antonio Risério. Quem mais catalisou essa imagem foi Dorival Caymmi deitado na rede. Suas músicas refletem um ritmo lento, com imagens longas, derramadas, de quem fica na varanda olhando o mar. "Caymmi fica anos elaborando uma canção e quando fica pronta parece que sempre existiu", completa Risério.

Amado dos pobres
O conceito de baianidade também se expõe magistralmente na obra de Jorge Amado. Quem chega na cidade com seus romances na mala, reconhece todos os ícones que identificam a terra de todos os santos, mas deve ter sensibilidade antropológica para refazer a imagem dos lugares pelo olhar dos meninos abandonados, dos negros, das prostitutas, dos marinheiros, enfim, dos pobres, que afinal, formam a verdadeira alma da região e enriquecem as páginas do escritor. É preciso ler a cidade também pelas barbas brancas do cabaneiro Juvená, amigo de copo de Vinicius de Moraes. Em Itapoã, ele é uma espécie de guardador da história recente do pedaço. Em seu bar de palha e obras de arte, muita gente famosa esqueceu-se da vida. Nos anos 70, Juvená montou uma barraca no percurso dos trios elétricos. O lugar era tão animado que o último Carnaval do escritor João Ubaldo Ribeiro foi lá, pulando em cima da mesa. "Estou sempre aberto a todos, desde que haja amizade", diz Juvená. Salvador é assim. Há sempre mais.

O candomblé, por exemplo, representa uma das maiores resistências à folclorização que tomou conta da cidade. Os ialorixás desprezam os foliões fantasiados de orixás que acreditam estar popularizando a religião. Abominam visitantes nos terreiros, com olhos de quem presencia uma dança típica. "Nós conseguimos impor a crença trazida pelos escravos, pelo respeito humano que sempre guiou nossas ações. Por isso hoje brancos e negros, pobres e ricos se unem aqui em busca de paz e equilíbrio. Somos a tradição e o novo", atesta Maria Stella de Azevedo Santos, a mãe Stella de Oxóssi, do Axé Opô Afonjé, a maior liderança da religião hoje na Bahia. Ela completa 60 anos de iniciação em setembro, e por sua longa trajetória sabe de seu papel político. Além de resguardar a cultura africana, o candomblé estabeleceu na sociedade baiana o poder da mulher. Assim, como orixás do sexo masculino e do feminino dividem a hierarquia nos terreiros, as mulheres tomam conta do espírito e do cotidiano da família baiana. É tão explícita essa alma feminina que os baianos se referem a Salvador como a Cidade da Bahia. A essa organização matriarcal de 450 anos, mãe Stella faz a sua generosa homenagem. "Vamos agradecer até aos algozes que tiraram os povos da África e trouxeram para cá. Foi tétrico, mas tornou-se um benefício para o Novo Mundo. A força dos Orixás ficou guardada no coração das pessoas e hoje se expande como a energia que respiramos."