Como dois afogados, o prefeito de São Paulo, Celso Pitta, e seu criador, Paulo Maluf, disputam para ver quem se livra do outro primeiro. Já que o naufrágio no lamaçal está em curso e não há botes salva-vidas para todos, impera a lei do cada um por si. Mestre e discípulo repetem o velho dilema dos biscoitos Tostines: foi Pitta quem abandonou Maluf ou foi Maluf quem se livrou de Pitta? Para embaralhar a cena, um grande jogador entrou em campo para tentar decidir a parada e levar vantagem na hora da divisão do espólio. Senhor do PFL, mandachuva no Planalto e candidato à sucessão de FHC, o senador Antônio Carlos Magalhães sabe da importância dos votos paulistas, que já derrotaram Lula três vezes. Atuando nos bastidores, ACM ajuda a alinhavar o roteiro do impeachment de Pitta e a sobrevida de Maluf. Nas conversas que vem mantendo com políticos do Estado, o senador tem mostrado as cartas. Considera o sacrifício de Pitta um bom preço para salvar o que resta do malufismo. ACM, porém, não entra numa operação socorro de graça. Ele quer um acordo para ter o PPB em seu palanque em 2002. Maluf, aparentemente, topa pagar a aposta.

Resposta cruel
Se o ex-prefeito busca uma bóia poderosa, Pitta joga para o público interno e tenta mostrar que tem fôlego para remar contra a maré. O capítulo mais visível dessa disputa por oxigênio se desenrolou na tarde da quinta-feira 25, quando o prefeito, isolado no Palácio das Indústrias, anunciou que estava deixando o PPB, devido à "absoluta omissão" do partido diante da saraivada de críticas disparadas contra ele. A estocada que deixou Pitta mais desnorteado partiu de seu antigo padrinho político, que é presidente nacional do PPB. Na véspera, Maluf havia declarado ao jornal O Estado de S.Paulo que não tinha nada a ver com a atual administração paulistana. Como se não bastasse, comparou desempenhos em relação ao número de multas aplicadas às empresas de coleta de lixo, numa tentativa de mostrar que o índice de corrupção em sua época era mais baixo. "Eu diria que houve ingratidão", reclamou o prefeito.

Além de rápido, o PPB foi cruel na resposta. "O partido sente-se aliviado do peso que carregava ante a imagem negativa do prefeito e de sua administração", retrucou, em nota, o presidente estadual do PPB, Marcelino Romano Machado. Embora ainda esteja à frente da maior cidade do País e mantenha a reeleição em seus planos, Pitta terá dificuldade em encontrar guarita partidária. Nos últimos quatro meses, ele tentou se aproximar do PFL, do PSDB, do PTB, e, mais recentemente, do PMDB. Nas fileiras pefelistas, não há praticamente nada a fazer diante da sentença decretada por ACM. No PSDB, continuará contando, no máximo, com a cordialidade do governador Mário Covas, que pretende apenas evitar uma crise entre o Estado e o Município. A Executiva do PTB tratou de avisar que impugnará qualquer aproximação com Pitta. "Já temos os nossos próprios erros", ponderou Roberto Jefferson (RJ), líder da bancada federal. No PMDB, Pitta enfrenta a resistência da ala do presidente da Câmara, Michel Temer, mas ainda tem esperanças no grupo liderado pelo ex-governador Orestes Quércia.

De imediato, o prefeito precisa mesmo é tentar impedir a debandada de sua base na Câmara Municipal, ameaçada pelo lodo que escorre da CPI da propina. Medidas moralizadoras tomadas por Pitta nos últimos dias, como a demissão de 73 funcionários, incluindo cinco administradores regionais, pouco efeito fazem na contabilidade dos 35 vereadores considerados como aliados. Há um grupo, evidentemente minoritário, que está enrolado na rede municipal de extorsão e trata apenas de salvar o próprio pescoço. O restante está de olho nas próximas eleições. Dos 22 vereadores que compareceram à reunião convocada por Pitta para justificar sua saída do PPB, poucos saíram, de fato, em defesa do prefeito. Waldih Mutran foi uma das exceções. "Ele se sentiu abandonado, num mar de lama que não foi ele quem fez", disse o pepebista Mutran, fazendo um trocadilho com o slogan da campanha de Maluf ao governo do Estado. Conhecida raposa da política paulistana e antigo defensor de Pitta, o vereador Brasil Vita (PPB) pediu tempo para pensar. "Preciso que os acontecimentos amadureçam para emitir uma opinião", justificou.

Para complicar a semana mais tumultuada da vida política de Pitta, uma acusação contra o prefeito apareceu, pela primeira vez, num depoimento à polícia. Enrolado no esquema de propinas na região central, o ex-administrador João Bento garantiu ao delegado Romeu Tuma Junior que recebeu ordens diretas de Pitta para não perturbar a vida de um determinado grupo de vendedores ambulantes. Aliás, o clima anda pesado até entre a equipe policial. Os dois delegados que cuidavam inicialmente do caso, Tuma Junior e Naief Saad, foram surpreendidos no começo da semana pela determinação do chefe da Polícia Civil, Marco Antônio Desgualdo, de terem de prestar contas a um colega recém integrado ao grupo, Itagiba Franco. Tuma Junior ameaçou abandonar as apurações. Na sexta-feira 26, porém, Desgualdo determinou que ele continuasse no posto e afastou o superior imediato de Tuma Junior, Eduardo Hallage, diretor do Departamento de Identificação e Registros Diversos, que fez campanha para o governador Mário Covas. Nos meios policiais, a dança de cadeiras era apontada como uma disputa pelos holofotes, que estariam focando pouco o gabinete de Desgualdo.

Encontro no Morumbi
O destino político do prefeito, no entanto, começou a ser traçado muito longe da fogueira de vaidades da polícia, como uma preliminar das eleições presidenciais. O ambiente também era mais requintado: a casa do cardiologista Bernardino Tranchesi, no elegante bairro do Morumbi. No domingo 21, convocado pelo senador Antônio Carlos Magalhães, o presidente da Câmara Municipal, Armando Mellão, passou quase três horas na casa de Tranchesi, seu amigo de longa data e médico de confiança do senador. Novato na política, Mellão conheceu ACM há pouco mais de um ano e, no encontro dominical, recebeu instruções sobre o provável encaminhamento do impeachment do prefeito Celso Pitta. De olho em 2002, além de ganhar espaço em São Paulo, ACM tenta socorrer Maluf, que voltou a ter problemas pessoais (leia nesta pág.). A movimentação do senador é acompanhada de perto por seus correligionários paulistas, que nem sequer discutem a possibilidade de ficar ao lado de Jorge Bornhausen, outro pefelista que sonha disputar a Presidência. "Somos conservadores e pragmáticos", diz um dirigente do partido, lembrando que vai esperar para ver a direção do vento. É o clima do salve-se-quem-puder vigorando em todos os escalões.
Colaborou: Luísa Alcalde

 

Todas as fichas em 2002

O presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), tem um raro senso de oportunidade. A cruzada a favor de uma CPI para o Judiciário já lhe rendeu a simpatia de eleitores. Na terça-feira 23, no percurso de carro até o Congresso, três motoristas acenaram. Um chegou a aplaudi-lo. Além de afagar o ego, as manifestações reforçaram sua convicção de que a luta contra as mazelas do Poder Judiciário tem forte apelo popular. Um cenário muito favorável para ACM, que nunca pensa pequeno. Depois de frequentar durante a ditadura a copa e a cozinha dos generais e dar as cartas nos governos civis, Antônio Carlos, 71 anos, sabe que terá em 2002 sua última chance de chegar ao Palácio do Planalto. "Ele tem todos os pré-requisitos para isso. Está num partido grande, é forte no seu Estado, tem projeção nacional e está levantando uma bandeira importante", avalia o entusiasmado senador José Jorge (PE), vice-presidente do PFL.

Atuando em duas frentes, ACM trabalha para a torcida atacando o Judiciário e, dentro do partido, mexe nas engrenagens. No Rio de Janeiro, ajudou a desfazer as intrigas que ameaçavam afastar o ex-prefeito César Maia do partido e fez de Rubem Medina o presidente local. No Paraná, ACM pretende fazer o deputado Abelardo Lupion presidente da legenda e passar por cima da resistência do governador Jaime Lerner. Em São Paulo, onde o PFL é controlado pelo vice-presidente, Marco Maciel, orientou os pefelistas do Estado a abandonarem Celso Pitta. Como no Ceará o PFL não tem força, o partido adiou a eleição do diretório para dar tempo de cooptar novos membros, tendo como alvo o senador Sérgio Machado, que está sem espaço no ninho tucano.

Na corrida rumo ao Planalto, Antônio Carlos vem atropelando aliados e até o seu partido. PFL, PMDB e PSDB foram surpreendidos com seu empenho para a criação da CPI. Da tribuna, ACM apresentou um dossiê com denúncias de corrupção, nepotismo e gastos exagerados da Justiça. "Apesar de termos a maior bancada no Senado, ele nos ignorou", reclama o presidente do PMDB, senador Jader Barbalho (PA), numa queixa endossada por tucanos e pefelistas. Antes de se lançar contra o Judiciário, Antônio Carlos só buscou o sinal verde do presidente Fernando Henrique. Teve êxito. Na quinta-feira 25, FHC exibiu sua afinidade com ACM, criticando os gastos do Judiciário, em conversa com parlamentares. "Isso não pode continuar assim", disse.

Os parceiros de ACM na base governista tentam colocar obstáculos a sua estratégia para suceder FHC no Planalto. O PMDB, por exemplo, condicionou a participação do partido na CPI do Judiciário à criação de uma comissão para investigar o sistema financeiro. A iniciativa peemedebista recebeu discreto apoio de tucanos e pefelistas temerosos das consequências da briga de ACM contra o Judiciário. Eles não devem conseguir evitar a criação da CPI, mas vão trabalhar para que ela não saia de controle. "Eu garanto que não haverá confronto entre os poderes", prometeu ACM da tribuna, numa tentativa de acalmar seus aliados mais aflitos.
Isabela Abdala

 

"Depois da gravidez, o dr. Paulo começou a me desprezar"

As investigações sobre a máfia da propina tomaram outro rumo na última semana e acabaram arranhando a imagem do ex-prefeito Paulo Maluf. Na CPI da Câmara Municipal surgiu em um dos depoimentos o nome de um funcionário fantasma que seria considerado "intocável" por causa de suas ligações com Maluf: Silvio Rocha de Oliveira. Segundo as denúncias, Silvio – que foi candidato a deputado federal pelo PPB em 1998 – participaria de um esquema próprio de cobrança de propinas. Convidado a depor na segunda-feira 22, Silvio passou mal e interrompeu o depoimento quando o presidente da CPI, José Eduardo Cardozo (PT), quis saber a razão pela qual ele teria recebido, em 1990, US$ 40 mil de Calim Eid, homem de confiança de Maluf. Depois os integrantes da CPI foram até sua casa, onde apreenderam um vídeo com um bombástico depoimento. Ali, Silvio afirmava ser avô de uma filha de Maluf. O ex-prefeito teria engravidado Silvana Rocha de Oliveira quando ela tinha apenas 14 anos. O relacionamento teria começado em 1988 e durado dois anos. A neta de Silvio, Priscila, hoje tem oito anos. Os US$ 40 mil ofertados por Calim, em dinheiro vivo, teriam o objetivo de calá-lo.

Depois de um longo silêncio, Silvana resolveu contar sua versão. "Estou disposta a fazer o exame de DNA para esclarecer a paternidade. Venho preparando minha filha, sempre mostrando fotos de Paulo Maluf. Eu quero justiça. Eu não quero nada dele", declarou Silvana. Hoje, ela está casada e quer tocar sua vida. Lembra com um misto de vergonha e indignação como tudo começou. Ela conheceu o ex-prefeito na casa do vereador Dante Ferrari. "Percebi que Maluf me olhava. Era um olhar de paquera e eu estava inibida", diz Silvana. Foi seu pai quem a apresentou a Maluf. "Ele pegou na minha mão e percebi que a mão dele estava suando." Segundo Silvana, Maluf descobriu o telefone de uma vizinha sua chamada Raquel. Quando ligava procurava pelo pai, mas pedia para conversar com ela. "Quando atendi, ele perguntou se eu era a mocinha que ele tinha conhecido no churrasco." Quem a levou a primeira vez a casa de Paulo Maluf foi um amigo de Silvio, André Machado, conhecido como Falcon. "Ele me deu dois beijos no rosto. Dona Silvia (a mulher do ex-prefeito) não estava em casa. Aí ele me disse: ‘Como você é uma menina perfeitinha’. Fiquei encabulada e encantada", lembra. Silvana conta que ele se aproximou, a abraçou e perguntou se ela tinha namorado. "Ele falava na minha linguagem. Dizia que deveria ter um namoradinho. Fiquei com medo, meus olhos se encheram de água. O mordomo me ofereceu água, e eu queria sair correndo."

Ao todo foram 15 encontros na casa do ex-prefeito. Segundo ela, Maluf era sempre carinhoso. Na segunda visita, Silvana foi com o pai e na presença também da secretária Olga, Maluf disse que queria ser seu padrinho. "Vou batizá-la", teria dito ele. Enquanto seu pai foi ao banheiro, Maluf roubou-lhe um beijo. "Meu pai viu eu limpar a boca, mas depois neguei que Maluf tinha me beijado." A partir desse momento, Silvana começou a sonhar. Ela queria ser artista e trabalhar no programa de Gugu Liberato. "Comecei a me iludir, achei que iria trabalhar no Gugu e comecei a ir a casa de Maluf de táxi." Mas foi no terceiro encontro que os contatos íntimos teriam começado. "Ele me levou para o banheiro que fica na sala e é todo espelhado. Fechou a porta, tirou minha roupa e começou a acariaciar meu seio. Tirou uma camisinha do bolso e tirou a calça. Colocou a camisinha e mandou eu sentar em cima dele. Eu falei que não, sou uma menina ainda, sou virgem. Ele me acalmou pediu desculpas e pediu para eu esquecer tudo."

A intimidade entre os dois ia aumentando a cada encontro. "Um dia ele me levou no banheiro, foi tirando minha roupa. Ele só tirava o paletó e as calças. Ai aconteceu a penetração. No dia em que perdi a virgindade, eu sentia dor e ele parecia estar gostando." Silvana diz que manteve a relação em segredo. "Uma vez ele não usou preservativo. Percebi que estava grávida quando comecei a sentir enjôo." Na mesma época, Silvana começou a namorar um garoto chamado Marcelo.

"Quando contei a verdade a meu pai, ele me bateu. Depois da gravidez doutor Paulo começou a me desprezar", lembra Silvana. Mesmo assim, Maluf teria dado a ela dinheiro para comprar uma casa depois que Priscila nasceu. "Fui sozinha com a criança ao escritório de Calim Eid. Ele me deu um cheque, que não me lembro o valor. Fui ao banco, não me lembro se era Banespa ou Itaú, e saquei o cheque. Na conversa, Calim me perguntou se eu era virgem e me mandou assinar um papel em branco". Em outro encontro, quando foi pegar outra parte do dinheiro, Silvana se precaveu. "Coloquei um gravador na minha barriga, dentro da calcinha e gravei toda a conversa com Calim. A fita, eu e meu pai, entregamos a Samir Achôa (advogado e ex-deputado federal), pessoa de confiança." A história contada por Silvana é a mesma que seu pai gravou no vídeo apreendido pela polícia e também em outro depoimento dado ao Ministério Público no ano passado, pouco antes do segundo turno para as eleições. Maluf nega as acusações, considerando-as "falsas e mentirosas". Ele atribui a denúncia a intrigas de "adversários políticos" e diz, inclusive, que estaria disposto a fazer exames de DNA.

Após o nascimento da criança, Maluf ofereceu uma legenda a Silvio Rocha, que foi candidato a deputado estadual, em 1990. Silvio não conseguiu nem dois mil votos. ISTOÉ teve acesso a cinco cheques de outros supostos pagamentos feitos a Silvio Rocha, em 1992, quando foi candidato a vereador. No dia 1º de setembro de 1992, através do Comitê Municipal Boa Sorte São Paulo, da campanha de Maluf a prefeito, teriam sido emitidos a Silvio dois cheques: um no valor de Cr$ 20 milhões (US$ 3,4 mil) e outro de Cr$ 22,3 milhões (US$ 3,8 mil). Dois dias depois, outro de Cr$ 2,3 milhões (US$ 453,78) e, no dia 9 de setembro, mais um de Cr$ 10 milhões (US$ 1,6 mil). No dia 16 de setembro, Silvio teria recebido Cr$ 7,9 milhões (US$ 1,2 mil). Os dois últimos eram nominais e foram depositados na conta de Antonino Jesse Ribeiro, um dos coordenadores da campanha malufista. Pelo menos mais um caso de ajuda financeira a Silvio foi descoberto. Há um registro feito na contabilidade da empresa Pau Brasil, que, em 1992, centralizava a distribuição e arrecadação dos recursos malufistas. Na página 43 de um dos 17 cadernos de contas da campanha, consta, no dia 13 de novembro, a saída de mais US$ 100 mil. A Pau Brasil era a empresa do pianista João Carlos Martins que foi flagrada pela Receita Federal sonegando os recursos de campanha.
Gilberto Nascimento, Luísa Alcalde e Mario Simas Filho