Cildo Meireles, 52 anos e 35 de carreira, é um apaixonado por futebol. Torcedor fanático do Fluminense, na adolescência jogou como meio-de-campo e quase integrou os times do Cruzeiro e do Flamengo. Vem desde esta época sua obsessão estética por todo tipo de esfera. Durante vários anos, e sem saber exatamente por que, Meireles – hoje considerado um dos artistas plásticos brasileiros de maior destaque no cenário internacional – colecionou bolas de diferentes cores e tamanhos. Algumas foram tomadas de seus dois filhos, Pedro Ariel, 15 anos, e Orson Joaquim, 10, assim batizado em homenagem dupla ao cineasta Orson Welles e a Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Em 1992, ao criar a instalação Glove trotter, Meireles distribuiu no solo as bolas da coleção e as cobriu com uma extensa e fina malha de aço. Feita a convite do MoMa de Nova York, a obra pode agora finalmente ser vista no Brasil, a partir da terça-feira 25, na galeria Luisa Strina, em São Paulo. “Ela iria se chamar All brave new world, frase tirada de Shakespeare, porque está ligada ao Descobrimento. Imaginei alguém atirando uma rede e capturando mundos”, explica.

Como o futebol, que sempre gera opiniões conflitantes, as instalações de Meireles envolvem o visitante e provocam as reações mais diversas. Pode-se imaginar o festival de risos, interrogações e perplexidade que tomará conta do Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde ele também inaugura, na quinta-feira 27, uma retrospectiva de sua consagrada carreira. No festival Cildo Meireles que assola o País, suas obras ainda podem ser vistas no segmento contemporâneo da Mostra do redescobrimento – Brasil 500 anos com a instalação Strictu e na coletiva Investigações: o trabalho do artista, no Itaú Cultural, ambas na capital paulista. Reunindo 27 trabalhos, a mostra do MAM exibe pela primeira vez no Brasil instalações pertencentes a importantes museus internacionais, com preços que atingem a casa dos US$ 300 mil. Entre elas a majestosa Fontes – feita para a Documenta de Kassel de 1992 –, uma sala amarela decorada com mil relógios amarelos de parede e seis mil réguas de carpinteiro, igualmente amarelas, pendendo do teto. Observar a evolução artística de Meireles, desde os desenhos expressionistas da década de 60 até os atuais trabalhos ambientais, passando pela fase mais política e conceitual – na qual despontam as notas de zero dólar e notas de cruzeiro com o carimbo Quem matou Herzog? –, é repassar um pouco da história da arte brasileira, hoje tão afinada com a cena mundial.
Esta é praticamente a mesma retrospectiva que coloriu de ironia o New Museum of Contemporary Art de Nova York até março passado, e que, no balanço do ano, algumas revistas americanas escolheram como uma das melhores exposições de 1999. A repercussão foi tanta que a revista Art in America – uma das mais importantes publicações dos Estados Unidos na área de artes plásticas – dedicou sua capa de julho ao trabalho do artista, numa matéria de oito páginas. Paralelamente, a editora inglesa Phaidon publicou, dentro da coleção Contemporary artists, o livro Cildo Meireles, agora lançado no Brasil pela sofisticada Cosac & Naify.

Sem modismo – Classificado como artista conceitual – aquela modalidade em que as obras já nascem com necessidade de uma bula para compreendê-las, tal o número de referências e sugestões dadas pelo autor –, Cildo Meireles hoje se diz cansado do modismo que tomou conta do setor nos anos 70. Na verdade, sua produção atual foge a classificações do gênero. Seu mais recente trabalho, por exemplo, Pintura número 1, em exibição no Itáu Cultural, é praticamente uma pintura como indica o título. Ao ligar duas paredes por um tubo de PVC amarelo no qual se projeta a sombra roxa de um fio de aço, ele extrapolou os limites da tela tradicional para fazer uma “pintura” espacial. Belíssima, por sinal. “Às vezes penso que poderia ser autuado por vadiagem. Gosto de perambular pela liberdade que as artes plásticas permitem.” A inspiração do artista, que ainda este ano estará em cartaz na Eslovênia, Coréia do Sul, Espanha e Alemanha, costuma vir de lances bem inesperados como a instalação Através, montada na Bélgica em 1989 e ausente da retrospectiva brasileira. Feita de um labirinto de redes, venezianas, telas, cercas e grades, o trabalho nasceu do movimento de um simples papel celofane embolado, que ele jogou na lixeira de seu ateliê, no bairro carioca de Laranjeiras. “O papel parecia vivo, emitia sons e movimentos”, lembra ele.

Tais idéias podem ficar muito tempo na sua cabeça. É o caso de Entrevendo, concebida em 1970 e realizada só em 1994. Trata-se de um túnel cônico de madeira, que abriga numa das bordas um ventilador e uma fonte de ar quente. Quando o visitante entra no ambiente, põe na boca duas pedras de gelo, uma doce e outra salgada. A proposta é aguçar a percepção, o paladar e o tato, em oposição à natural hegemonia do visual nas artes. “Se você pode usar todos os sentidos, por que não utilizá-los?”, questiona o fã de Marcel Duchamp e El Greco, que costumava temperar suas elucubrações multissensoriais com o consumo de 40 cigarros diários, agora reduzidos a quatro. Para os próximos anos, Cildo Meireles, um desafeto da modernidade que não tem carteira de motorista, celular, aparelho de fax nem e-mail, pretende também diminuir suas viagens pelo mundo. Chegou a hora, então, de dar outros tratos à bola.