A camponesa russa caminha pelo bosque, aproveitando o sol da primavera para colher cogumelos, numa cena comum no país desde o tempo dos czares. Ela mal repara num galpão cinzento, meio oculto pelas árvores, a apenas 100 metros de onde faz a sua coleta, sem ser incomodada por uns poucos soldados que conversam e fumam. A cena seria bucólica se não retratasse a realidade de muitos dos depósitos onde são estocadas as cerca de 21 mil ogivas nucleares da Rússia.

Desde o fim da União Soviética, fala-se do perigo de seu antigo arsenal nuclear ser pilhado por terroristas internacionais ou mesmo por militares revoltosos. Na verdade, os militares russos têm mostrado uma disciplina surpreendente, no que se refere a envolvimento em conspirações ou manobras golpistas. Já a ameaça terrorista parece estar mais presente do que nunca. Em 1996, um grupo de chechenos que estava, havia duas semanas, observando uma instalação militar nuclear próxima a Tula foi capturado pelas autoridades por “pura sorte”, segundo um oficial russo. Este, que se identifica apenas como coronel Sergei, diz que ainda não houve roubo de nenhum artefato nuclear, mas esta possibilidade não pode ser descartada. Ele diz que “qualquer organização terrorista possui tudo o que é necessário para se apossar de uma arma dessas; eles têm peritos capazes de montar um plano em silêncio, estudar a segurança dos depósitos de armas e executar o roubo delas”. Segundo o militar, não seriam necessários mais de 26 homens bem treinados e equipados para tal operação.

Sergei sabe do que fala, pois trabalha há 30 anos no 12º Departamento do Ministério da Defesa russo, uma “divisão” encarregada exatamente da segurança das armas nucleares do país. A unidade foi criada em 1947, e inicialmente a preocupação era com um ataque preventivo dos EUA. A ameaça terrorista não era considerada seriamente nos tempos da URSS, com todo seu aparato de repressão interna, de modo que praticamente nada se fez no sentido de haver uma proteção física para as instalações. E o problema é que tal situação chegou até nossos dias, depois do fim da URSS e com sua herdeira, a Rússia, mergulhada numa crise econômica e social, agravada por uma estrutura nova e poderosa de crime organizado. “Hoje, as áreas ao redor dos depósitos de armas não são nem controladas pelo Serviço de Inteligência”, explica o coronel, comentando que qualquer um pode chegar a menos de 100 metros de um depósito “sem sequer estar infringindo a lei”. Na organização atual, os depósitos possuem várias portas blindadas e uma estrutura extremamente reforçada de concreto, dando-lhes uma certa resistência mesmo contra um ataque nuclear, mas quase nenhuma segurança contra ações de grupos armados, como terroristas. Apenas as instalações nucleares mais estratégicas possuem alguma proteção deste tipo.

Ainda nos tempos soviéticos, tal problema já começara a ser discutido e, em 1982, o Ministério de Energia Atômica iniciou estudos sobre a proteção física dos arsenais nucleares. Grupos de estudo foram criados e um centro de testes foi construído próximo a Tula. Nele, foram experimentados pelo menos dez sistemas diferentes de proteção, mas todos foram então considerados ineficientes, ou muito caros. Com o fim da guerra fria, a percepção desta insegurança do arsenal nuclear russo fez com que os governos ocidentais se mobilizassem para fornecer ajuda a Moscou no sentido de financiar a proteção das instalações. Apenas os EUA gastaram US$ 63,8 milhões e tal valor devia ter sido dividido entre os grupos de pesquisa sobre a Rússia criados em 1982, que ainda operam sob supervisão do Ministério de Energia Atômica. A maior parte do dinheiro, no entanto, nem sequer saiu dos EUA, servindo para pagar equipamentos adquiridos de firmas americanas. Quanto ao montante que chegou à Rússia, Sergei comenta que “de cada dez dólares enviados, no máximo cinco foram usados para melhorar a segurança das instalações nucleares”.

Mesmo assim, algumas melhorias foram realizadas. Através de contrato com a Allied-Signal Corp., por exemplo, sistemas de proteção ambiental e de temperatura, alarmes antifogo e detectores de intrusos foram instalados em pelo menos 115 carros ferroviários usados para o transporte de artefatos nucleares, particularmente aqueles levados para serem destruídos, de acordo com os tratados de desarmamento.

“Instalações Potemkin”– Segundo o coronel Sergei, foram construídas no país algumas instalações-modelo, chamadas não-oficialmente de “instalações Potemkin” (numa referência ao príncipe Potemkin, que mandava maquilar locais a serem visitados por Catarina, a Grande), cujo único objetivo é mostrar aos militares e comissões de inspeção americanas um nível excelente de segurança e proteção das instalações nucleares russas. Estes lugares têm sistemas completos de alarme e outros sensores, com pessoal bem preparado e em número suficiente. O primeiro destes lugares foi exatamente a instalação perto de Tula. Para lá eram levados todos os visitantes estrangeiros, mas em 1996 houve uma rebelião das esposas dos militares da base, revoltadas com os pagamentos atrasados dos maridos. Depois disto, a instalação de Tula foi fechada, todo o pessoal militar dispersado por outras unidades e os artefatos nucleares removidos para outros depósitos. Um outro “Potemkin” foi criado então na região de Volgogrado, e foi este que recebeu em 1998 a visita do general Eugene Heiger, comandante das forças estratégicas dos EUA.
A subida ao poder de Vladimir Putin, no início deste ano, parece já ter alterado em certa medida o quadro da situação.

Ex-agente do KGB (o antigo serviço secreto soviético), Putin já deu claras demonstrações de interesse em melhorar as condições do aparato militar russo. Maiores verbas para a Defesa já foram liberadas e, em muitos casos, os pagamentos foram colocados em dia. Além disso, a proteção destas armas também tem se valido de sucessos na diplomacia. O Irã tem se beneficiado do intercâmbio com a Rússia para modernizar seu equipamento militar, e obter alta tecnologia no setor. Assim, entre outras coisas, submarinos não-nucleares de última geração, de fabricação russa, navegam hoje sob a bandeira iraniana. Com tudo isto obtido de forma legal, Teerã não tem se mostrado inclinado a incentivar ações terroristas contra Moscou. Mas isso não afasta a possibilidade de ação de grupos independentes, como os financiados pelo terrorista Osama Bin Laden.