Deposto em 1989 depois de ter governado o Paraguai a ferro e fogo por 35 anos, o general Alfredo Stroessner exilou-se no Brasil e desde então vive enclausurado num plácido bunker em Brasília, onde é considerado um asilado exemplar. Na semana passada, o presidente Raúl Cubas Grau se juntou, de maneira inesperada, ao ex-tirano e antecessor. A cena foi constrangedora. Protegido por uma escolta de fuzileiros navais brasileiros armados com metralhadoras, Cubas chegou à base aérea de Assunção pouco depois das 21h da segunda-feira 29. Ele veio acompanhado pelo embaixador brasileiro no Paraguai, Bernardo Pericás Netto, e pelo presidente do Partido Colorado, Bader Rachid Lichi. Na pista, um jatinho HS-125 da Força Aérea Brasileira (FAB) esquentava os motores. O avião veio do Brasil para buscar o ex-mandatário, que solicitara asilo político ao Itamaraty um dia depois de renunciar. Do lado de fora, Cubas era apupado por um pequeno mas animado grupo de manifestantes que, aos gritos de "assassino", exibia fotos dos seis estudantes mortos por pistoleiros pró-Cubas nos conflitos da sexta-feira passada. Cabisbaixo, vestindo calça jeans e uma camisa xadrez, Cubas embarcou acompanhado pela mulher, Mirtha, e pelas duas filhas. Às 21h30, o avião levantou vôo com destino a Florianópolis. Depois, o ex-presidente se deslocou para Camboriú (Santa Catarina), onde tem um belo apartamento.

A humilhação de ser resgatado em seu país por militares estrangeiros foi um fim melancólico para um tumultuado governo de apenas sete meses. A origem da crise foi a recusa de Cubas em prender seu mentor político, o general da reserva Lino César Oviedo, condenado a dez anos de prisão por uma tentativa de golpe em 1996. Mas o estopim da queda foi detonado há apenas dez dias, quando o vice-presidente, Luís María Argaña, foi fuzilado por três pistoleiros numa rua de Assunção. Argaña era inimigo político de Cubas e de Oviedo. Em poucos dias, a crise cresceu feito rastilho de pólvora e ganhou as ruas, com violentos confrontos entre estudantes e grupos paramilitares oviedistas, em meio a ameaças de golpe militar. A combustão atingiu o clímax na sexta-feira 26, quando oviedistas dispararam contra a multidão na praça onde ficam os edifícios do Senado e da Câmara, matando seis pessoas. "Os oviedistas planejavam um massacre que poderia mergulhar o país numa guerra civil", afirmou um dirigente político de oposição. Prestes a sofrer impeachment no Senado e diante da iminência de um banho de sangue, o ex-presidente seguiu o conselho de seu colega brasileiro Fernando Henrique Cardoso e renunciou ao mandato na noite de domingo 28. "Ele nem sequer convocou a bancada oficialista no Senado para comunicar sua decisão. Foi um duro golpe", lamentou o senador José Francisco Appleyard, do Partido Colorado, expoente da tropa de choque do ex-presidente. Na mesma noite, assumiu o cargo o presidente do Senado, Luis Angel González Macchi. "Acabou o reino da violência, do terror e da perseguição", garantiu o novo mandatário.

Mercosul Com interesses estratégicos no Paraguai, o Brasil foi um dos que mais pressiaram para que o vizinho não saísse dos trilhos. Logo depois do assassinato de Argaña, o presidente Fernando Henrique Cardoso ligou para Raúl Cubas e, depois das condolências de praxe, deu o primeiro recado: a ordem constitucional vigente não deveria ser afetada. O embaixador brasileiro em Assunção, Bernardo Pericás Netto, passou a fazer uma linha direta entre a embaixada, a chancelaria paraguaia e o Itamaraty. Na quarta-feira 24, o chanceler Lampreia e seu colega argentino Guido Di Tella tranquilizaram a secretária de Estado americana, Madeleine Albright, garantindo que o Paraguai seria expulso do Mercosul se houvesse quebra da legalidade.

Na quinta-feira 25, com a aprovação pelo Congresso da abertura do processo de impeachment contra Cubas, o sinal amarelo do Itamaraty começou a avermelhar. FHC voltou a falar com Cubas, mostrando-se preocupado. Mas este garantiu que acataria a decisão do Senado, fosse qual fosse. No domingo de manhã, Pericás fez um longo relato ao chanceler Luiz Felipe Lampreia, mostrando que o risco de guerra civil ou de, no mínimo, mais mortes nas cada vez mais violentas manifestações. A saída de Cubas, renunciando ao cargo sem esperar o julgamento no Senado, parecia ser a melhor opção. Lampreia então ligou para o presidente, que estava no Rio. Na conversa, FHC se convenceu de que teria de mostrar, de modo sutil mas direto, o caminho das pedras para Cubas. Às 13h, FHC telefonou ao presidente paraguaio e, num recado cheio de analogias, mas direto, disse a Cubas que ele poderia entrar para a História ao evitar mais derramamento de sangue e que, com um gesto grandioso, iria contribuir para a decisiva pacificação do Paraguai. Cubas disse que iria pensar e acabou renunciando à noite.

Antes de abandonar o cargo, porém, Cubas mandou libertar seu patrono, o general Oviedo, "preso" no Batalhão da Guarda Presidencial. O general fugiu de avião para a Argentina, onde obteve asilo político. Enquanto isso o ex-presidente, que pensava em ficar no Paraguai gozando da imunidade que o cargo de senador vitalício concede a ex-presidentes, assustou-se com o dia seguinte. Foi acusado pela morte dos cinco estudantes e começou a receber ameaças. E percebeu que sua imunidade poderia facilmente ser cassada por 2/3 dos senadores. Na manhã da segunda, refugiou-se na casa do embaixador Pericás e pediu asilo político ao Brasil. No Itamaraty, o pedido foi recebido com surpresa, mas a resposta foi rápida. "Não houve nenhum entendimento prévio entre Brasil e Argentina sobre asilo. As coisas aconteceram por acaso", garantiu um diplomata.

Transição Essa crise trouxe à tona uma capacidade de resistência da sociedade civil paraguaia nunca vista antes. O catalisador desse amadurecimento foram os estudantes do movimento apartidário Jovens pela Democracia, que lideraram a oposição à violência dos paramilitares e da polícia. "O Paraguai está vivendo uma revolução pacífica, com estudantes, Igreja, sindicatos e camponeses unidos pela primeira vez para conquistar a democracia", definiu o estudante de Direito Gustavo Erico. "A transição paraguaia, na verdade, começou no domingo. Antes, houve apenas rupturas nas elites", garante Daniel Pérez, dirigente do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA).

A rapidez com que os fatos se precipitaram nestes últimos dias também faz supor que a impunidade começa a ser atacada no Paraguai. O ex-ministro do Interior e irmão do ex-presidente, Carlos Cubas, e o ex-comandante da Polícia Nacional, Niño Ruiz Díaz, foram denunciados por cumplicidade no assassinato dos estudantes. Um dos paramilitares presos depois de terem sido fotografados atirando nos estudantes na praça, Walter Gamarra Leguizamón, é suspeito de ser um dos matadores de Argaña. Em sua casa, a 200 metros do local do atentado, foram encontradas muitas armas e munições. Na terça-feira 30, a Procuradoria do Estado denunciou o ex-presidente Cubas, o ex-ministro da Fazenda e o general Oviedo por desvio de quase US$ 1 milhão de fundos públicos, supostamente para financiar a campanha dos bandos paramilitares contra os opositores.

O ambiente político também se movimentava em caminhos quase nunca percorridos no passado. O novo presidente, González Macchi, anunciou na mesma terça-feira a formação de um gabinete de "união nacional", integrado por seis colorados e quatro integrantes da oposição (PLRA e Partido do Encontro Nacional, PEN), no primeiro governo multipartidário no Paraguai desde 1948. Os partidos acertaram também que González Macchi deverá cumprir o restante do mandato de Cubas (que termina em 2003). Em 90 dias, serão realizadas eleições para presidente e vice-presidente com uma chapa única encabeçada por González e com um candidato da oposição como vice. Uma eleição protocolar, num país que está saturado de prévias e pleitos fraudulentos. Resta saber se o novo presidente, tido até agora como uma liderança inexpressiva, será capaz de conduzir uma verdadeira transição política do Paraguai. Ou se, por caminhos tortos, vai continuar valendo a lógica do Partido Colorado – no poder há 52 anos –, muito bem definida pelo senador Appleyard: "Até agora, só uma coisa nos permitiu subsistir como partido e seguir no governo. É o instinto, o olfato que temos do poder. Os colorados se encantam com o poder e gostam de estar no governo. Então, quando vemos que estamos a ponto de cair, a necessidade de nos proteger para não cair se sobrepõe às paixões que nos dividem." Se a democracia continuar avançado, um exílio dourado os espera no Brasil.