Observado a distância, o mundo dos videogames parece um parque temático alucinado, infestado por matadores compulsivos, caças F-16 e colegiais japonesas dando pontapés. Mas, visto de perto, um fato salta aos olhos: os jogos de computador estão saturados de ocultismo, mitologia e até espiritualismo. O ciberespaço virou uma fuga do espaço-tempo de Einstein, uma espécie de território "espiritual" animado por mitos ancestrais. É como se todas as intuições e superstições humanas, banidas pelo racionalismo tecnológico, tivessem retornado como fantasmas eletrônicos para assombrar os filhos da tecnologia digital. E com a aproximação do fim do milênio – ou fim do mundo, segundo os profetas do apocalipse –, alguns jogos estão tomando uma estranha e explícita tendência religiosa.

Caso em questão: o iminente lançamento nos Estados Unidos de Requiem: Avenging Angel (3DO; experimente o jogo no site www.3do.com), uma experiência de proporções bíblicas com o melhor que a tecnologia tridimensional tem a oferecer. O céu passou por uma guerra civil e os anjos caídos vieram para a Terra com o objetivo de destruir toda a raça humana. Você é Malachi, o anjo vingador enviado por Deus para subjugar os renegados. Para combatê-los é preciso recuperar certas relíquias sagradas – como a coroa de espinhos e a espada de fogo – e, além do armamento convencional, também se pode acabar com os pecadores transformando-os em pilares de sal ou fazendo seu sangue ferver. Requiem está recheado de destroços bíblicos e ansiedade apocalíptica: tem uma espaçonave chamada Leviatã, um barman chamado Jonas e um dilúvio está para acontecer.

Mas Requiem não é o único jogo sobre o fim do mundo. Ainda inédito no Brasil, Messiah (Shiny Entertainment) é outro game de ação que tem um herói angelical. A história também é semelhante: o Armagedão está quase sobre nós e Deus enviou um dos seus anjos para acabar com a legião de Satã antes que os sete selos do apocalipse possam ser abertos. Parece até sermão de testemunha de Jeová.

Com seus bordéis e gente deformada, Messiah é ainda mais tenebroso do que Requiem, embora trate a religião meio na base da gozação. Seu "messias" poderia muito bem chamar-se Jesus Cristo, não fosse ele um querubim de fraldas de nome Bob. Esse anjinho da nova era tem o poder da possessão e em sua luta contra Satanás vai usando temporariamente os corpos de outros personagens, geralmente ladrões ou cafetões, que depois precisam ser mutilados para evitar a retaliação subsequente.

Com Requiem é diferente. A mente por trás desse game chama-se Phil Co, um católico praticante que não gosta de esculachar os pobres anjos, apesar de caprichar na violência. Ele deu uma certa profundidade ao seu jogo tomando por base o Paraíso perdido, de John Milton, para escrever o roteiro. "Tive a idéia quando estava na igreja, assistindo à missa", conta ele. O resto veio diretamente da Bíblia, um livro que Co conhece muito bem. Ele sabe que os anjos são guerreiros poderosos e "não aquelas criaturinhas diáfanas retratadas pela new age". E, enquanto o jogador se delicia com os prazeres do game, Requiem vai levando a mitologia às últimas consequências.

Mito ancestral
Pelo final do jogo, por exemplo, é preciso entrar no caos que envolve a criação para combater os anjos caídos como Lilith e Geryon. Neste ponto o cenário tem perspectivas distorcidas no estilo Escher e vitrais coloridos parodiando a fé que Requiem nunca anuncia, mas que é insinuada no ícone usado para identificar a "força" de Malachi: uma cruz.

Com uma cartografia fantástica e violência espetacular, esses videogames parecem um inferno de Dante pós-industrial ou aquela zona alucinógena que os budistas tibetanos dizem esperar por nós logo após a morte, uma dimensão em que os medos e desejos escondidos em nossas mentes surgem em imagens tridimensionais resplandecentes.

Por outro lado, por que o outro mundo não pode ser igual a este? Essa é a divertida suposição de Grim Fandango (LucasArts, já editado no Brasil), que mistura cenários e situações dos filmes de detetives de Humphrey Bogart com uma estética azteca-decô. A "dança macabra" tem lugar na Terra dos Mortos, um purgatório populado por figuras mascaradas do dia de finados mexicano, tipos como Manny Calavera, um malandro agente de viagens que é o "herói" do jogo. O trabalho de Calavera é vender pacotes turísticos para as almas recém-chegadas que estão a caminho do paraíso para pagar sua dívida com o purgatório. O submundo de Grim Fandango é o nosso próprio submundo, cheio de gângsteres, corrupção, ladrões e vigaristas, no qual todo mundo mente, trapaceia, fuma e reclama do trabalho. O inusitado é que certos espiritualistas argumentam que a vida após a morte se parece tanto com essa vida que os defuntos recém-chegados precisam ser informados de que eles realmente bateram as botas. Talvez no futuro seja preciso convencer essas almas de que elas não foram parar em um videogame cósmico.