Engana-se quem pensa que os bissexuais e os adeptos do sexo grupal são poucos no Brasil. Uma pesquisa realizada pelo hospital carioca Gaffré e Guinle, centro de referência nacional em Aids, revelou que em mais da metade de 662 casais entrevistados os maridos são bissexuais. E 8% de 202 pessoas ouvidas admitem a prática de sexo coletivo. Nesse universo, homens relacionam-se com travestis alimentando a fantasia de serem penetrados por uma linda mulher. Os gays, por sua vez, idealizam ser o ativo do casal. O estudo revela também que as festas de sexo grupal são regadas a drogas e álcool e contam até com motéis que oferecem suítes de duas a três camas. O tema faz parte do livro Sexualidade humana, lançado este mês pelo cancerologista e especialista em Aids Carlos Alberto Morais de Sá. Aos 56 anos, casado, pai de três filhos e avô de dois netos, Carlos Alberto se diz chocado com o resultado da pesquisa. “Sou quadrado. Sexo coletivo é a antítese do amor”, diz. Em entrevista em seu consultório, no Gaffré, ele criticou as campanhas de prevenção à doença por nem sequer fazerem menção a esse tipo de comportamento sexual. Afirmou ainda que os brasileiros recusam-se a assumir preferências sexuais pouco convencionais e contribuem para o aumento do índice de contaminação pelo HIV.

ISTOÉ – Por que temas tabus, como o bissexualismo e o sexo grupal, são ignorados nas campanhas de prevenção à Aids?
Carlos Alberto Morais de Sá – A sociedade não assume e não discute essas questões e o bissexual não admite a sua identidade. Para a sociedade, ou se é hetero, ou homo. Talvez isso explique por que o Brasil tem um dos maiores índices de contaminação entre heterossexuais masculinos. O bissexual só assume a prática hetero e deleta a relação que tem ou teve com outro homem. Mesmo que ele seja o passivo numa transa com um travesti, fantasia que está com uma mulher. Nessa relação, o homem não é aquele que tem pênis e se comporta necessariamente como ativo. Os papéis são muito flexíveis e nada disso é levado em consideração nas campanhas educativas.

ISTOÉ – Nem os homens contaminados assumem a bissexualidade?
Morais de Sá
– Uma mulher infectada encontrou na agenda do marido vários nomes femininos com endereços. Descobriu que todos eram de homens que se identificavam como mulheres. O marido se contaminou insistindo que era heterossexual. A maioria dos homens afirma que adquiriu a doença com mulheres e enrustem os parceiros. De 196 mulheres entrevistadas, 54% foram infectadas por maridos bissexuais; 45,4% delas sabiam que eles se relacionavam com outras mulheres. Apenas 16,8% suspeitavam da bissexualidade. Isso é muito pouco! Além disso, 51,3% nunca haviam usado camisinha. Dos 365 homens entrevistados, 39,7% também nunca haviam feito uso de preservativo.

ISTOÉ – Por que os bissexuais não são organizados como os homossexuais?
Morais de Sá
– Talvez porque os homens queiram garantir relacionamentos com parceiras femininas.

ISTOÉ – E como os travestis se comportam?
Morais de Sá
– Eles não gostam de assumir o lado feminino, apesar de terem seios e se vestirem como mulheres. Afirmam-se ativos e têm a fantasia de serem mulheres que penetram. Quando contaminados, negam que foram penetrados. Ninguém gosta de assumir o lado passivo.

ISTOÉ – O comportamento agressivo dos machões seria a ponta de um iceberg?
Morais de Sá
– O perfil do macho brasileiro, que come todas as mulheres e as enche de porrada, mostra a ambiguidade. Se gostasse de mulher, ele não batia. O comportamento sexual nem sempre corresponde à imagem do indivíduo. Muita gente se surpreende quando descobre homens com posturas sociais insuspeitadas como homossexuais. A sexualidade não é monomórfica. Nós é que impomos padrões.

ISTOÉ – Como é possível controlar a contaminação na prática do sexo em grupo?
Morais de Sá
– Até hoje nunca foi lançada nenhuma campanha educativa que desestimulasse o sexo em grupo. Existem motéis, como o Vila Régia, no Centro do Rio, com salas só para isso. Os mais modernos oferecem suítes com duas a três camas de casal. Ninguém é obrigatoriamente hetero ou homo e as festas costumam ser regadas a muita bebida e drogas. Há diversões do tipo trenzinho, em que um fica atrás do outro e todos vão se encaixando. E sorteio que define quem fica com quem. Num lance desses, ninguém vai usar camisinha. Os bacanais e surubas existem desde a Roma antiga, mas é difícil que alguém assuma.

ISTOÉ – O sr. se choca com esse comportamento?
Morais de Sá
– Sou quadrado, de formação católica. Para mim sexo e amor têm de ser seletivos. Sexo coletivo é a antítese do amor. Fico chocado, embora tenha que aceitar porque é uma realidade da sexualidade humana. Minha tarefa é tentar proteger essa prática. É preciso descobrir estratégias de intervenção.

ISTOÉ – Quem são, hoje, os maiores grupos de risco?
Morais de Sá
– Em maior situação de risco estão todos aqueles que fazem sexo com penetração e ejaculação sem usar preservativo. Entre 263 mulheres entrevistadas, 51,3% ignoram a camisinha. Entre 145 homens, 39,7% também não fazem uso dela.

ISTOÉ – O governo tem sido eficiente no combate à Aids?
Morais de Sá
– O número de novos casos diminuiu e sinto um clima de já ganhou. Por isso me preocupo. A última campanha do governo foi feita no Carnaval. Se há uma tendência à estabilização, as campanhas deveriam ser intensificadas. O investimento no tratamento é indispensável, só que a chave do sucesso são as campanhas educativas. Hoje existem cerca de 200 mil doentes registrados pelo Ministério da Saúde e acredita-se que haja entre 500 e 600 mil infectados em todo o Brasil.