O empresário Bill Gates virou o homem mais rico do mundo depois de transformar a Microsoft num império que praticamente monopoliza o mercado mundial de programas de informática. Em Washington, a Microsoft está em apuros por causa de uma investigação do Departamento de Justiça sobre práticas desleais contra os concorrentes. Em Brasília, os contratos da multinacional de Bill Gates com o governo federal, um filão de mais de uma centena de milhões de dólares por ano, estão provocando uma guerra comercial com lances e personagens que expõem as engrenagens dos negócios em torno dos poderes da República. A disputa por esse mercado milionário entre duas empresas de informática da capital federal – TBA e IOS – já gerou uma investigação policial por denúncias de roubo de documentos. Ameaça agora respingar lama no Congresso por causa de acusações de tentativas de chantagem que envolvem o presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, deputado Luiz Piauhylino (PSDB-PE), e lobistas que costumam trafegar apenas nas sombras do poder. O caso chegou ao presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), que tomou a iniciativa de fazer uma apuração particular, convocou Piauhylino para uma conversa e não gostou do que ouviu. "As explicações do deputado não me convenceram", afirmou ACM.

As primeiras escaramuças dessa guerra surgiram no rastro da meteórica ascensão da TBA no mercado de informática. Graças a um acordo com a Microsoft, que lhe dá exclusividade de representação da multinacional nos grandes contratos corporativos em Brasília, a TBA, da empresária paulista Maria Cristina Boner Leo Silva, saltou em sete anos da condição de empresa de fundo de quintal, com faturamento de R$ 85 mil em 1992, para a de maior pagadora de ISS no Distrito Federal no ano passado, quando faturou cerca de R$ 100 milhões. Esse crescimento vertiginoso, claro, não passou despercebido pelos rivais. Em outubro do ano passado, Lisane Bufquin, dona da IOS Informática e ex-namorada do ex-deputado Sérgio Naya, procurou a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça para se queixar do monopólio da TBA. Na virada do ano, Lisane recorreu a outras armas para intensificar sua ofensiva. Escalou o ex-diretor da Transbrasil Anchieta Hélcias para montar uma estratégia com o objetivo de abocanhar um naco do cobiçado faturamento da TBA. Hélcias, que se auto-intitula "o primeiro lobista de Brasília", tem trânsito fácil na corte local e é amigo de personalidades como o vice-presidente Marco Maciel e o presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC). Aconselhados por Hélcias, Lisane e seu atual marido, Álvaro Teixeira de Mello, resolveram levar o caso ao Congresso para aumentar a pressão. Um velho amigo de Hélcias, o deputado Piauhylino encarregou-se de apresentar no dia 19 de janeiro um requerimento de convocação de uma audiência pública na Comissão de Ciência e Tecnologia para "inquirir os representantes da TBA Informática e da Microsoft do Brasil por abuso de poder econômico".

Dois dias depois, um envelope com timbre de confidencial contendo um bilhete de Hélcias e uma cópia do requerimento de Piauhylino pousou na mesa de outro influente lobista de Brasília, Alexandre Paes Santos. Dono do escritório de lobby APS, que tem em sua carteira de clientes grandes empresas nacionais e estrangeiras, Alexandre fora contratado pela dona da TBA para armar uma contra-ofensiva aos ataques da IOS. Os dois lobistas combinaram então um almoço num restaurante do Hotel Bonaparte. Hélcias apareceu acompanhado do filho do deputado, o advogado Luiz Piauhylino Filho. Nenhum deles relata claramente o que foi acertado. Mas, segundo a denúncia levada, no início de março, por Cristina Boner ao presidente do Senado – numa reunião marcada a pedido do embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Paulo Tarso Flecha de Lima –, Anchieta Hélcias e o advogado Piauhylino Filho fizeram uma tentativa de extorsão. De acordo com a acusação, para interromper o cerco à TBA, com a retirada do pedido de audiência na Câmara e de investigação em outros órgãos oficiais, eles cobraram US$ 5 milhões e 30% dos contratos da empresa de informática com o governo federal. Uma vez cumprido o trato, o deputado Piauhylino suspenderia o processo contra a TBA na Comissão de Ciência e Tecnologia. Dias depois do almoço no Bonaparte, numa conversa que manteve com Alexandre Santos em seu escritório de advocacia, o próprio deputado confirmou a proposta feita a Cristina Boner. A mesma história, finalmente, foi repetida por Cristina Boner e Alexandre Santos ao primeiro vice-presidente da Câmara, deputado Heráclito Fortes (PFL-PI), num encontro na casa do parlamentar, ao qual estava Fernando César Mesquita, diretor do Senado e assessor de imprensa de ACM. "Tentaram me chantagear, mas não topei", disse Cristina a ISTOÉ.

Segundo Hélcias, não houve tentativa de chantagem. Em sua primeira conversa com ISTOÉ, ele afirmou que nunca falou em dinheiro com Alexandre Santos. Quando soube que Heráclito contou outra história, mudou sua versão. Começou a admitir que falou em R$ 5 milhões, mas não como extorsão e sim como uma proposta de acordo comercial. "O Alexandre queria um acordo. Disse a ele que isso só seria possível se a TBA abrisse o mercado e concordasse em pagar uma indenização às empresas que tiveram prejuízo com a reserva de mercado", defende-se Hélcias, em seu novo relato. Piauhylino afirma que seu interesse é apenas fazer cumprir a lei anti-truste e a de licitações públicas, uma vez que estes contratos milionários são feitos sem concorrência.

Quem também acabou entrando no circuito foi o empresário José Farani, dono da Academia de Tênis de Brasília. Num telefonema pelo sistema viva voz, Farani conversou com Hélcias, tendo como testemunhas Cristina Boner e Bruno Sasso, ex-gerente da Microsoft em Brasília e diretor da TBA. De acordo com o que Cristina contou a ACM e Heráclito, Hélcias repetiu as ameaças. "Disse apenas que ela ia se dar mal porque eu não sou como o Chapéu de Couro (pistoleiro envolvido no caso da morte da deputada alagoana Ceci Cunha). Quando estou de um lado, não mudo para o outro", contou Hélcias. Em meio ao imbróglio, ACM mandou chamar Piauhylino a seu gabinete. Numa conversa tensa, cobrou explicações. ACM saiu do encontro se dizendo muito mal impressionado com o deputado. "Não foi isso que ele me disse. Recusei-me peremptoriamente a discutir essa história de chantagem e reafirmei minha disposição de investigar o monopólio privado da Microsoft que está fechando contratos com o governo federal sem nenhuma licitação. Não vão me intimidar", diz Piauhylino, que nega ter se encontrado com Alexandre Santos.

Há outras coisas mal explicadas nessa história. Alexandre Santos diz que Piauhylino Filho foi a seu encontro apresentando-se como advogado da IOS. O deputado nega qualquer relação sua ou de seu filho com a empresa. "Só fui conhecer o deputado em janeiro deste ano", afirma Lisane Bufquin. Piauhylino pai diz que a conhece há mais tempo, das rodas sociais de Brasília. Em 1997, porém, o senador Carlos Wilson (PSDB-PE), que atendeu a pedidos de Piauhylino e Álvaro Teixeira de Mello, marido de Lisane, solicitou ao diretor da Companhia Nacional de Abastecimento, Roberto Campos Marinho, seu primo e apadrinhado político, que arranjasse contratos para a IOS. No ofício nº 238-97 enviado em 8 de outubro à multinacional americana Oracle Corporation, outra gigante da área de informática, Marinho comunica a escolha da IOS como parceira da Conab. Cinco dias depois, a direção da Oracle do Brasil enviou ao então presidente da Conab, Francisco Turra, hoje ministro da Agricultura, um documento registrado em cartório em que confere à IOS "em caráter especial e exclusivo a responsabilidade pelo atendimento e comercialização de seus produtos e serviços para o projeto de Reestruturação Administrativa com Mudança na Tecnologia da Informação na Conab". O deputado Piauhylino nega também ter tido influência nessa decisão e acusa o senador. "O Carlos Wilson procurou meu filho para ser advogado da IOS numa licitação na Conab. Como não havia serviço jurídico, ele saiu fora."

O fato é que há 60 dias o submundo de Brasília se move em torno de uma história que envolve acusações de chantagem, tentativa de extorsão e tráfico de influência. Além disso, existem gastos anuais superiores a R$ 100 milhões, nos quais o dinheiro do contribuinte financia a modernização dos computadores do serviço público. É material suficiente para que o Ministério Público e a Corregedoria da Câmara iniciem uma investigação.

 

Os personagens da trama

Cristina Boner – Modesta funcionária do Serpro, Cristina deixou o serviço público no começo dos anos 90 para tocar um pequeno negócio de informática. Numa lucrativa parceria com a Microsoft, conseguiu em pouco tempo transformar sua empresa numa gigante do mercado de informática. Ela atribui sua ascensão a uma aposta bem-sucedida na empresa de Bill Gates numa época em que a multinacional americana não estava com essa bola toda. Alavancada na exclusividade concedida pela Microsoft, Cristina conseguiu seu primeiro grande contrato justamente com o Serpro.

Lisane Bufquin – Miss Brasília no início dos anos 70, Lisane casou com um diplomata francês e morou 17 anos no Exterior, onde começou a trilhar uma carreira na área de informática. De volta ao Brasil, abriu em 1994 uma pequena empresa chamada Logique, que, mais tarde, mudou o nome para IOS Informática. Nessa época, namorou o então deputado Sérgio Naya. O primeiro e único grande contrato da IOS foi com a Infraero.

Luiz Piauhylino – Presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, Luiz Piauhylino (PSDB-PE) é deputado federal pela terceira vez. Logo no primeiro mandato, teve seu nome envolvido num escândalo em Pernambuco, que ligava a empreiteira Queiroz Galvão a financiamentos de campanhas eleitorais pelo caixa dois. Piauhylino foi herdeiro de uma importante banca de advocacia no Recife, que tinha como principais clientes os grandes usineiros da região Nordeste. Entrou na política ao lado do ex-governador Miguel Arraes, mas rompeu com o PSB para aderir ao governo.

Anchieta Hélcias – Ex-diretor da Transbrasil, orgulha-se de ter aberto o primeiro escritório assumidamente de lobby na capital federal e de ter ajudado o vice-presidente Marco Maciel na preparação de um projeto de lei que regulamenta a atividade de lobista. Foi para a TAM depois de brigar com a Transbrasil. Nas eleições do ano passado, pretendia ser candidato a deputado federal pelo PFL de Pernambuco, mas acabou desistindo na última hora. Foi um dos representantes do PFL no comitê central da campanha de reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Alexandre Paes Santos – Famoso pela discrição, o lobista Alexandre Paes Santos atua há duas décadas nos gabinetes da Esplanada dos Ministérios e no Congresso Nacional. No começo de suas atividades foi sócio do jornalista Gilberto Amaral, o mais antigo colunista social de Brasília. Seu escritório de lobby, que tem grandes clientes do Brasil e do Exterior, é apontado por seus próprios colegas lobistas como o maior da capital federal.

 

O poder do monopólio

Um é bom, dois é demais. O mercado de suprimentos de informática em Brasília reeditou o ditado popular, não se conectou à livre concorrência e criou um ambiente propício a acusações e chantagens comerciais. Desde 1992, a Microsoft vem renovando anualmente a concessão de contratos de exclusividade à TBA Informática. A IOS Informática, sua rival no mercado, também chegou a ter status privilegiado junto à Microsoft. "Perdi porque a Microsoft em Brasília fez exigências para privilegiar a TBA", acusa Lisane Bufquin, dona da IOS. "Não é nada disso. A IOS simplesmente não cumpriu os requisitos técnicos que a Microsoft adota em todo o mundo", responde Cristina Boner. Há três semanas, as duas empresárias chegaram a se reunir, mas não houve um entendimento.

Sem acordo, a IOS formalizou no dia 12 uma denúncia contra a TBA na Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça. Na representação, acusa a TBA de práticas monopolistas e de superfaturar preços em até 1.657% nas vendas a órgãos do governo, com base num relatório da empresa de auditoria Boucinhas & Campos. Em sua defesa, a TBA diz que cobrou preços distintos por serviços distintos e contesta os cálculos da auditoria. Além disso, diz que o relatório foi feito com base em documentos roubados de seus arquivos. A denúncia gerou um inquérito policial. Nos próximos dias, o titular da SDE, Ruy Coutinho, decide se enquadra ou não a TBA na Lei Antitruste.

Colaborou Guilherme Evelin