Quase 11 anos depois de sofrer a invasão de tropas americanas que depuseram o ditador-narcotraficante Manuel Antonio Noriega e apenas seis meses após receber dos EUA a posse da zona do canal interoceânico, o Panamá ainda é um país em crise de identidade. Não é à toa que a palavra “soberania” é um dos vocábulos mais recorrentes – é até nome de parque ecológico – deste pequeno istmo de 2,8 milhões de habitantes. Afinal, sua história gravitou em torno dos interesses americanos desde que Tio Sam instigou os panamenhos a se separarem da Colômbia, em 1903, justamente para construir o canal. No momento em que conseguiu tomar seu destino nas mãos, o Panamá se vê numa encruzilhada. Duas importantes fontes de divisas, o canal e a zona livre de Colón vivem momentos de expectativa. O primeiro é uma fabulosa obra de engenharia concluída pelos americanos em 1914 para ligar os oceanos Pacífico e Atlântico e por onde passam hoje cerca de 4% do comércio marítimo mundial. Mas está se tornando obsoleto. Atualmente, tem capacidade de receber cerca de 90% de toda frota marítima mundial. Essa porcentagem, contudo, tende a cair ano a ano, na medida em que os novos navios são cada vez maiores. As autoridades panamenhas já fazem estudos para aumentar a capacidade das eclusas, mas o país precisaria de vultosos investimentos externos para realizar tal obra. Já a zona livre de Colón, que atrai empresas multinacionais, principalmente asiáticas, em função da ausência de impostos, vem sofrendo um acelerado desaquecimento com a abertura econômica internacional. A situação agravou-se ultimamente, com a crise cambial do real – a América Latina e o Brasil são os grandes destinatários de produtos reexportados através de Colón.

Críticas dos EUA – Para piorar a situação, começam a ser emitidos em Washington sinais de que o Panamá não está sabendo se comportar depois que os “rapazes” se foram. Com uma economia dolarizada e dependente do setor de serviços (mais de 70%), este país centro-americano sempre foi conhecido por ser um dos grandes paraísos fiscais, o que o torna naturalmente atrativo para a lavagem de dinheiro. Sua posição geográfica – faz fronteira com a Colômbia – também o coloca na rota do narcotráfico. Mas as denúncias vêm crescendo depois que os EUA devolveram o canal, sua infra-estrutura e as instalações que serviram de bases militares. A mais recente foi um relatório de inteligência divulgado no domingo 9 pelo governo americano, segundo o qual o Panamá tem feito poucos esforços para combater o tráfico de drogas. O relatório diz que o país continua a ser uma grande rota de cocaína e, cada vez mais, de heroína, exportadas através de portos e fronteiras escassamente patrulhadas. É curioso que, por imposição americana depois da invasão de 1989, o Panamá não tenha Forças Armadas, mas apenas uma força policial de 12 mil homens. O relatório lembra que, no ano passado, as apreensões de drogas caíram 80% em relação a 1998 e acusa as agências legais panamenhas de combate ao tráfico de serem “corruptas e maltreinadas”. O documento diz ainda que a zona livre de Colón está sendo usada por narcotraficantes não apenas para ocultar drogas em contêineres de carga, mas também para lavar dinheiro proveniente de seus negócios escusos. “A situação no Panamá tomou um rumo dramático”, afirmou o deputado John L. Mica, republicano da Flórida. “E só tem piorado, especialmente depois que os EUA deixaram o país, seis meses atrás”, alertou.

Em meio à nova ofensiva americana, o Brasil começa a olhar o Panamá como um pólo de aglutinação de um bloco econômico centro-americano, através do qual o Mercosul poderia associar-se de modo a ampliar seu poder de barganha nas negociações com Washington sobre a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), que os EUA querem implantar já em 2005. Para o embaixador brasileiro no Panamá, Pedro Paulo Assumpção, o mundo marcha em blocos, a globalização é inevitável. Assim, será mais fácil e mais produtivo ter relações com uma América Latina integrada. “É melhor pensar num mercado com 30 milhões de pessoas do que num de três milhões”, afirma Assumpção. O presidente Fernando Henrique Cardoso irá ao Panamá em novembro próximo para a cúpula Íbero-Americana e aproveitará para manter conversações com a presidente panamenha, Mireya Moscoso, a qual visitará o Brasil no próximo ano. Depois de quase um século como virtual protetorado dos EUA, pode ser que a integração econômica num bloco latino-americano seja a alternativa mais viável para o Panamá se firmar como país.

Passando sombrio

Quem vê as instalações do luxuoso Hotel Meliá, em Colón, não imagina que o complexo abrigou, entre 1946 e 1984, a famigerada Escola das Américas, instituição de contra-insurgência criada pelos EUA. A escola treinou mais de 60 mil militares latino-americanos até ser transferida para Fort Benning, na Flórida. Ficou conhecida como “Escola dos Assassinos”, porque entre os graduados figuraram muitos dirigentes e torturadores das ditaduras militares. Entre eles estão o major salvadorenho Roberto D’Aubuisson, criador dos esquadrões da morte, os ex-ditadores Manuel Noriega (Panamá), Roberto Viola e Leopoldo Galtieri (Argentina), Hugo Banzer (Bolívia) e o atual assessor presidencial peruano Vladimiro Montesinos. Entre os brasileiros figuram expoentes da linha-dura como o recentemente falecido brigadeiro João Paulo Penido Burnier e os generais Hélio Ibiapina Lima e Thaumaturgo Sotero Vaz. “A preparação da Escola das Américas era voltada para a guerra do Vietnã e, para nós do Brasil, não interessava a preparação de rambos”, desconversa Ibiapina, envolvido na repressão do Recife depois do golpe de 1964 e atualmente presidente do Clube Militar.