Quando o quarentão espanhol don Francisco Picasso Guardeño chegou a Cuba, em 1860, deleitou-se com as belezas do lugar. Esqueceu para sempre o passado europeu, tomou uma negra por esposa e lá permaneceu até morrer. Gerou quase 100 descendentes, entre filhos, netos e bisnetos. Seria mais uma história entre tantas de europeus contadas na ilha de Fidel não fosse o fato de o aventureiro ser nada mais nada menos que o avô materno de Pablo Ruiz Picasso, o grande mestre da pintura do século XX.
O pintor nunca soube exatamente o destino de seu avô, menos ainda que possuía primos e sobrinhos em Cuba, todos negros, de idades variadas, com o sobrenome Picasso. Um deles, Juan Antonio Pascual Picasso Pérez, 71 anos, bisneto de don Francisco, é muito parecido fisicamente com o artista espanhol. Ironicamente, ganhou a vida até se aposentar fazendo desenhos técnicos e arquitetônicos para o governo de Cuba. Em rodas de amigos, Picasso, o espanhol, costumava dizer, em tom jocoso, que “por ali, em Cuba, havia perdido um avô”. A conhecida piada foi a pista para encontrar os parentes do Caribe.

Em 1998, a Asociación Pablo Picasso de La Coruña, Espanha, fez contato com a Universidade de Havana, encomendando uma investigação séria sobre a veracidade da historieta do pintor. A pesquisadora Bárbara Mejídes, especialista na obra de Pablo Picasso, recebeu a incumbência. Depois de reunir todos os dados, há três meses começou a visitar os familiares, que se surpreenderam com a notícia. “Tinham conhecimento de Picasso como artista, mas não como parente”, diz ela. O trabalho, intitulado Os Picassos negros, vai render um livro e um documentário, com o apoio de instituições espanholas.

Antes de aportar na efervescente Havana do século passado, o quarentão desbravara a América do Sul. Chegando à capital cubana, partiu meses depois para a província de Matanzas e daí se embrenhou até o centro da ilha, em busca de trabalho. O país atravessava os bons ventos do movimento pela independência. Na cidade de Cienfuegos, uniu-se a Cristina Serra, uma negra recém-liberta com quem se instalou na localidade de Sagua La Grande, núcleo geográfico de uma importante zona açucareira.

Com sua mulher negra teve três filhos: Juan Francisco Aurelio, o primogênito que nasceu em 1876; Vicenta Eulália e Arcadia de la Caridad. Somente o primeiro e a última lhe deram netos. A história conta que os homens e as mulheres da família mestiça tiveram boa educação, aprendendo ofícios e tarefas domésticas, como a época exigia. Todos aprenderam a ler e a escrever. E receberam o sobrenome do pai, Picasso, fato invejável, pois, naquela época, por conta de preconceitos raciais, muitos brancos desqualificavam os filhos mulatos e não os reconheciam como descendentes.

Don Francisco Picasso Guardeño morreu em 1888 de anemia, sem haver retornado à Espanha. Levou para a tumba os segredos de sua vida européia, que incluíam um casamento por desfazer naquelas terras. Dona Cristina, a esposa cubana, e os filhos nunca souberam do passado do velho espanhol.

Juan Pascual sempre foi um grande admirador da obra de Picasso. Típico cubano, daqueles que não dispensam um bom charuto e um cafezinho, é um homem culto e desenhista nato. Mas nunca associou o sobrenome que carrega ao do pintor – “claro, Picasso é branco e eu sou negro!”, diverte-se. Não guarda cópias dos desenhos que fez ao longo da vida. Mas o resultado do seu trabalho pode ser ainda observado na ilha.

Todos os descendentes de Pablo Picasso vivem hoje no centro velho de Havana. São pessoas humildes, que exerceram atividades variadas para sobreviver. Somente um deles, o pai de Juan Pascual, se envolveu com política – foi um membro do Partido Comunista Cubano, em 1925.

Juan Pascual lembra da história de uma prima, que hoje vive exilada em Miami. A moça, Luiza Picasso, louca por cosméticos, compareceu a uma feira nos Estados Unidos onde a espanhola Paloma, a filha do pintor famoso, lançava nova linha de perfumes. “Luiza não titubeou: chegou perto de Paloma e lhe disse que também era uma Picasso, mostrou a carteira de identidade e conseguiu umas amostras de perfume. Mas ninguém quis saber nada mais sobre estes Picassos aqui de Cuba”, ri Pascual. Agora, eles vão ser famosos.