A ciência brasileira viveu um dia histórico na quinta-feira 13. Pela primeira vez em 130 anos de existência, a revista britânica Nature, a mais respeitada publicação científica do mundo, dedicou sua capa a um artigo brasileiro, produzido a partir dos resultados de uma pesquisa totalmente desenvolvida no País. O título Citrus pathogen sequenced (Patógeno cítrico sequenciado), na primeira página da publicação, anuncia um artigo de sete páginas com explicações sobre o sequenciamento completo do genoma da Xylella fastidiosa, uma bactéria responsável pela Clorose Variegada de Citros, nome da doença conhecida como praga do amarelinho, que castiga três em cada dez pés de laranja do Estado de São Paulo. O parasita enruga a casca da fruta, suga a seiva da planta, seca boa parte do suco e causa prejuízos anuais de pelo menos US$ 100 milhões, ou R$ 180 milhões, no câmbio comercial. “Os genomas anteriores foram baseados na Europa e nos Estados Unidos. Os grandes pesquisadores estão felizes com a chegada do Brasil a este clube”, afirmou o editor David Adam no editorial da revista. “A cada vez que um mapeamento de genoma é concluído e reconhecido, a ciência avança, de um dia para outro, pelo menos dez anos no estudo daquele organismo. Por isso, hoje é um dia de glória para os cientistas brasileiros”, empolga-se o bioquímico Andrew Simpson, um inglês que abandonou os centros de pesquisa americanos e europeus para viver em São Paulo e coordenar o Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer e a rede que mapeou os genes da Xylella. Seu nome é o primeiro da lista quilométrica de 116 autores que assinam o texto publicado na Nature.

O destaque oferecido pela revista confirma o potencial de um dos maiores feitos da pesquisa acadêmica do País em todos os tempos. Os trabalhos, iniciados em outubro de 1997, receberam ponto final no dia 6 de janeiro deste ano, dez meses antes do prazo previsto. Para viabilizar o projeto, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) criou a rede Onsa, um instituto virtual sem instalações físicas fixas ou corpo administrativo, com 192 pesquisadores das três universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp e Unesp) espalhados em 35 laboratórios ligados por computador. A Fapesp investiu US$ 12,5 milhões no projeto. O Fundo Paulista de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), organização de produtores de suco que serão diretamente beneficiados com a descoberta de uma forma de combate à praga, completou o orçamento com US$ 500 mil. O suco concentrado de laranja é o sexto produto da pauta de exportações do País e o segundo do Estado de São Paulo, com uma receita nacional de exportação de US$ 1,5 bilhão anual.

Onça com s – Os pesquisadores do consórcio se permitiram uma pequena brincadeira ao escolher a sigla Onsa. Traduzido para o inglês, o nome oficial da malha virtual da Fapesp, Organização para o Sequenciamento e Análise de Nucleotídeos, torna-se Organization to the Nucleotide Sequencing and Analysis (Onsa). Como o projeto Genoma Humano financiado com dinheiro do governo americano foi batizado de The Institute for Genomic Research (TIGR) e tem como símbolo um tigre (tiger, em inglês), a turma da Fapesp adotou sua onça com s e escolheu o animal, comum nas matas brasileiras, para representar o projeto.

Os cientistas da rede Onsa sequenciaram os 2,7 milhões de pares de bases químicas do DNA da Xylella. As quatro bases – adenina, timina, citosina e guanina – são representadas pelos cientistas pelas letras A, T, C e G. Os pares de bases são feitos apenas entre adenina e timina (AT) ou entre citosina e guanina (CG). Eles ficam presos pela extremidade por uma longa cadeia espiralada de fosfato e açúcar, a molécula de ácido desoxirribonucleico, o DNA. Os genes são sequências de DNA com função, que é a capacidade de produzir as proteínas necessárias para a formação de um ser vivo.

Letras embaralhadas – Cada um dos 35 laboratórios recebeu uma parte do genoma, sempre composto pelas quatro letras, e o organizou na sequência. É como se um livro com 5,4 milhões de letras tivesse seus milhares de páginas arrancadas. As páginas teriam suas letras embaralhadas e seriam entregues, de forma aleatória, aos laboratórios encarregados de colocar todas as letras em seus lugares. O complexo trabalho de colocar estas “páginas” na ordem certa sem equívocos foi possível graças aos programas desenvolvidos pelo Laboratório de Bioinformática da Unicamp, coordenado pelos pesquisadores João Meidanis e João Carlos Setúbal. Coube à dupla organizar o sistema que, guardadas as proporções, fez o trabalho análogo ao dos supercomputadores usados pela empresa americana Celera Genomics no mapeamento do Genoma Humano. “O mapeamento não seria possível sem essa capacidade de processamento de informações”, admitiu Setúbal.

 

O esforço não foi em vão. Ao final dos trabalhos, os cientistas da rede Onsa tinham nas mãos o primeiro sequenciamento pioneiro do DNA de um fitopatógeno (agente causador de doença em plantas) no mundo – e também o primeiro genoma totalmente realizado fora de um centro de pesquisa americano, europeu ou japonês. Após este trabalho, concluído em janeiro, os pesquisadores iniciaram a fase de identificação dos genes ativos, isto é, com características funcionais, na bactéria. A escolha da Xylella fastidiosa não foi aleatória. “Precisávamos de um organismo cuja carga genética não fosse excessivamente simples nem extensa a ponto de impedir a conclusão dos trabalhos numa experiência inédita”, explica o diretor científico da Fapesp, o físico José Fernando Perez. “Além disso, o conhecimento da estrutura genética deste ser vivo deveria permitir iniciativas para a solução de um problema importante para o País”, acrescenta o diretor. A soma desses requisitos e o empenho dos citricultores levaram a Fapesp a escolher a praga do amarelinho.

O conhecimento adquirido pelos cientistas começa a produzir frutos. O genoma da bactéria Xanthomonas citri, responsável pelo cancro cítrico, é duas vezes maior que o da Xylella. Mesmo assim, este segundo mapeamento, que envolveu apenas dez laboratórios da Rede Onsa e consumiu um investimento de US$ 6 milhões, está prestes a ser anunciado. Além da Xanthomonas, o Projeto Genoma-Fapesp espera anunciar, até o final de 2001, a conclusão dos genomas da cana-de-açúcar, do câncer humano, em parceria com o Instituto Ludwig de São Paulo, e da bactéria clavibacter, que causa uma doença chamada raquitismo na cana-de-açúcar. O momento é tão positivo que o Departamento de Agricultura dos EUA resolveu financiar ainda este ano, no Brasil, o mapeamento de uma bactéria variante da Xylella, que ataca os vinhedos da Califórnia.

O sucesso do Projeto Genoma faz justiça a uma ilha de excelência respeitada em todos os setores do sistema acadêmico brasileiro, o que não é tarefa das mais fáceis. A lei que criou a Fapesp, em 1962, reservava para a agência 0,5% de toda a receita tributária paulista. O aumento do porcentual para 1%, em 1989, abriu o caminho para vôos mais altos. Quando o dinheiro vindo dos cofres públicos é insuficiente, a agência busca outras fontes. Dos R$ 913 milhões do orçamento total de 1998, R$ 188 milhões foram enviados pelo Estado em 12 cotas mensais, R$ 210 milhões vieram de aplicações financeiras e R$ 515 milhões saíram de parcerias com grupos privados, além de institutos brasileiros e estrangeiros.

Clube dos 14 – Os esforços da Fapesp colocaram a rede brasileira em um clube de 14 grupos que concluíram um sequenciamento genético no eixo EUA–Europa–Japão. Mas há o risco de se perder os rendimentos da descoberta se algumas medidas não forem tomadas rapidamente. Essa é a avaliação do biólogo Fernando Reinach, titular do Instituto de Química da USP, professor da Faculdade de Medicina da Cornell University, nos Estados Unidos, e um dos pesquisadores da rede. “O problema é a falta de relacionamento entre as universidades, seus pesquisadores e os grupos interessados em investir no Brasil para que esse conhecimento básico permita o desenvolvimento de remédios ou sistemas de combate à praga do amarelinho”, afirma Reinach.
Em outros países, o trabalho de desenvolver remédios a partir das descobertas acadêmicas fica, segundo o pesquisador, a cargo de pequenas e médias empresas de biotecnologia apoiadas por investidores que apostam no risco. Descoberta a fórmula, ela é vendida aos grandes laboratórios e grupos do setor, que depois irão pagar direitos às universidades de acordo com a venda. “O que produz boas patentes e resultados financeiros são as soluções encontradas em função dos estudos. Publicar é do jogo, mas a divulgação implicará perda de vantagem competitiva. Se os 21 projetos bancados pela Fapesp não produzirem resultados, empresas internacionais estruturadas poderão desenvolver substâncias contra a praga do amarelinho, patentear esses trabalhos e lucrar muito a partir do conhecimento produzido por nós”, diz o biólogo. José Fernando Perez, da Fapesp, discorda do colega. “Não se pode fazer pesquisa e depois sentar em cima de tudo. O Brasil produz 1% dos artigos científicos publicados no mundo. Se soubermos ler com cuidado e competência os 99% que foram feitos pelos outros, também poderemos tirar proveito. A via é de mão dupla. No fundo, o pesquisador quer mesmo é produzir, de preferência no limite do conhecimento”, acredita o diretor Perez. O importante é que a ciência brasileira continue a caminhar. Mesmo que seja com polêmicas.