Se fosse necessário definir em uma frase a estratégia dos franceses para reativar sua economia e enfrentar o maior problema dos europeus, a falta de empregos, uma boa opção seria dizer: eles decidiram remar contra a maré. Preferiram esnobar o modelo neoliberal receitado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e sua defesa intransigente das leis de mercado como a solução de todos os males. Enfrentam com todas as forças os americanos nos foros internacionais, erguem barreiras contra produtos importados, abrem os cofres sem nenhum pudor para subsidiar a agricultura, mantêm o Estado forte em setores importantes como a energia e o transporte. O resultado, para tristeza dos críticos, começa a aparecer nas estatísticas: o país deve crescer 3,5% neste ano, acima da média dos seus vizinhos europeus, e o desemprego é o menor desde 1991.

“A França representa no momento a resistência à globalização”, diz Leyla Perrone-Moisés, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Essa resistência, avalia ela, tem como questão central a defesa das tradições culturais do país. Isso ficou claro na recente troca de cadeiras no Ministério da Educação, em favor do ensino de alto nível nas escolas públicas. Um outro exemplo é o cinema. No ano passado, o faturamento dos filmes produzidos na França representou 30% do movimento total do mercado francês – no Brasil, os filmes nacionais abocanharam menos de 10% do bolo. Mas são também os queijos, vinhos, patês e outras especiarias produzidos pelas milhares de pequenas propriedades familiares espalhadas pelo país. A tecnologia usada nessa produção pode deixar a desejar, mas os efeitos sobre o mercado de trabalho francês não devem ser desprezados. Todos os franceses empregados no campo representam 5% da população economicamente ativa, enquanto nos Estados Unidos apenas 1,5% trabalha em atividades rurais. É justamente essa força que explica o barulho do lobby dos agricultores, o qual influencia inclusive decisões protecionistas de todo o bloco europeu. A fama recentemente conquistada pelo criador de ovelhas e produtor de queijos José Bové é exemplo disso. Bové virou um símbolo da luta contra a economia globalizada depois que participou de uma manifestação contra o McDonald’s, em Millau, no Sul do país. Em outras cidades, por sinal, os prefeitos conseguiram quadruplicar o preço da Coca-Cola e do Big Mac, dois ícones da cultura americana. A decisão foi uma resposta ao aumento de impostos patrocinado pelo governo norte-americano sobre foie-gras, um patê típico produzido a partir do fígado de ganso, e o queijo roquefort. Mas a defesa dos pequenos produtores não se restringe à zona rural. Em Paris, por exemplo, os grandes supermercados só têm autorização para funcionar nas áreas mais afastadas, longe do centro da cidade. A intenção é dar espaço aos pequenos negócios, mercearias, padarias e outros estabelecimentos, que geram mais empregos e garantem a subsistência de milhares de pessoas.

No plano mais geral, o governo de esquerda de Lionel Jospin (uma aliança entre socialistas, verdes e comunistas) significou a volta do crescimento como ponto central na formulação da política econômica, avalia Jorge Mattoso, professor do Instituto de Economia da Unicamp, que morou em Paris entre 1997 e 1998. “O governo Jospin representa a retomada da idéia de que é possível e necessário crescer para enfrentar o problema do desemprego”, afirma. Mattoso cita três medidas que considera exemplos dessa nova postura: o aumento do salário mínimo e a criação de um programa de empregos para jovens, decididos logo no início do governo, e a redução da jornada de trabalho para 35 horas semanais, mais recentemente. Novamente o país foi contra o manual neoliberal, segundo o qual patrões e empregados deveriam negociar as condições de trabalho longe da interferência do Estado. Nesse caso, o governo francês não se limitou a reduzir o limite de horas. Ao menos não no caso das pequenas empresas. Para essas, foram criadas linhas de financiamento para estimular a redução da jornada. Hoje metade dos assalariados já trabalha com a jornada reduzida, sendo que o índice sobe a 60% no caso dos negócios com menos de 20 funcionários. E uma parcela considerável da redução do desemprego é consequência dessa medida. Mas vale lembrar que essas medidas não surgiram do consenso total. A jornada de 35 horas, quando a proposta ainda tramitava no Congresso, foi duramente criticada pelo empresariado, segundo o qual as exportações francesas perderiam competitividade no mercado exterior.

Social-democracia – A questão ainda em aberto é se a França conseguirá manter sua resistência, já que ela aparece como a grande alternativa – até aqui bem-sucedida – para o modelo que defende com unhas e dentes a predominância do mercado, com os Estados Unidos e a Inglaterra à frente. “Não resta dúvida de que a postura da França é extremamente importante para o debate internacional. O governo Jospin segue o modelo clássico de social-democracia”, considera o cientista político Emir Sader, professor da USP e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “Se a França der certo, vai mostrar que o modelo anglo-saxão é furado. Na verdade, são dois modelos de civilização que estão em jogo”, conclui.


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