Em torno de uma réplica do Big Ben, o relógio que marca a paisagem londrina, espalham-se mais de 300 casas de madeira sobre alvenaria, no melhor estilo vitoriano. Encravada no topo da Serra do Mar, a vila de Paranapiacaba foi construída para abrigar os empregados da São Paulo Railway Company, a ferrovia que ligava o planalto paulista ao porto de Santos. Desde sua inauguração, em 1867, até o fim da concessão aos ingleses, 90 anos depois, Paranapiacaba viveu um período de opulência. A 43 quilômetros de São Paulo, era ponto estratégico para o transporte de passageiros e de carga, especialmente para o escoamento do café, base da economia da época. Em sua maior elevação, destacava-se o Castelinho, a residência do engenheiro-chefe, hoje transformada em museu. Nele trabalha Izabel Leite Gonçalves, 69 anos, testemunha das mudanças ocorridas na região. “Quando o inglês entregou o patrimônio à União, a vila era um encanto”, lembra Izabel.

Em 1946, ao ser repassada ao governo federal, a ferrovia foi rebatizada como Estrada de Ferro Santos–Jundiaí. Onze anos depois, acabou incorporada à Rede Ferroviária Federal, que começou a ser privatizada em 1996, na esteira do Programa Nacional de Desestatização. Em dezembro do ano passado, a rede entrou em fase de liquidação e sua então presidente, Anália Martins, ficou encarregada de vender todo o patrimônio. Embora tenha mais de dois mil moradores e seja tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Turístico de São Paulo, a vila, na prática, é apenas uma das propriedades da rede que mudará de mãos nos próximos meses.

Há décadas afastada do padrão de manutenção inglês, no ano passado Paranapiacaba foi incluída no rol dos 100 sítios históricos mais ameaçados do mundo pela World Monuments Fund, uma organização não-governamental com sede em Nova York. Agora, corre o risco de virar escombro. Os sinais de decadência já são mais do que visíveis. A antiga sede do Serrano, o clube de futebol dos ferroviários, está em ruínas. O madeirame da passarela que liga a parte alta à parte baixa da vila clama por uma reforma. Além de mal preservado, o conjunto arquitetônico convive com “puxadinhos”, cômodos de tijolos, agregados às construções originais. “Se não interrompermos este processo de decadência, perderemos registros preciosos de nossa cultura”, diz Zélia Paralego, presidente da Sociedade de Preservação e Resgate de Paranapiacaba.

O ferroviário José Calazans dos Santos, 76 anos, manobrista aposentado, trabalhou na estrada de ferro na época em que o comando era estrangeiro. “Com os ingleses, tudo tinha de ser perfeito. Depois que foi para o governo, tudo mudou”, compara Calazans. “Mesmo assim, Paranapiacaba é o lugar onde quero continuar vivendo.” Na prática, o futuro de moradores como Calazans é incerto. O próprio futuro da vila é incerto. Se dependesse apenas da Prefeitura de Santo André, onde se localiza Paranapiacaba, a vila seria incorporada ao município.

 

Na tentativa de influenciar no processo, a prefeitura encomendou um plano de desenvolvimento sustentável para Paranapiacaba à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP). “Além de planejar a recuperação da vila, o plano aponta formas de captar recursos”, diz Irineu Bagnariolli Jr., secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Santo André. “A prefeitura espera sensibilizar a Rede Ferroviária Federal.” Uma das possibilidades estudadas por ongs que atuam na região e pela própria prefeitura é criar uma fundação para gerenciar Paranapiacaba.

Com o prazo de extinção recém-prorrogado para dezembro, a liquidante da rede, Anália Martins, não adianta quais são seus planos para a vila, mas garante estar sensível às reivindicações. “A liquidação apenas reforça a urgência de se dar um destino a Paranapiacaba, que precisa ser preservada”, diz Anália. “Vamos tentar uma solução que seja coerente com o possível.” Enquanto a solução não chega, os moradores da região ficam cada vez mais inquietos. No cotidiano, o processo de deterioração da vila afeta seu potencial turístico, principal fonte de renda da população depois que a ferrovia perdeu importância. Por causa de sua beleza e das trilhas que atravessam a Serra do Mar, a cada final de semana mais de mil visitantes passam pela vila. Quando uma névoa similar à de Londres não encobre a paisagem, de alguns pontos pode-se avistar até a Baixada Santista. Não é à toa que a vila foi batizada de Paranapiacaba, expressão tupi-guarani que significa “lugar de onde se vê o mar”.

 

Tecnologia de ponta no alto da Serra do mar

 

Entre as preciosidades de Paranapiacaba destaca-se o sistema funicular adotado para transpor os 796 metros de altura que separam o planalto do litoral. Reflexo da sofisticada tecnologia britânica do século XIX, o funicular tinha uma máquina fixa que movimentava um cabo de aço sobre polias presas aos dormentes dos trilhos. Em cada ponta do cabo de aço, prendiam-se os vagões. Enquanto um trem subia a Serra do Mar, outro descia. O sistema tinha ainda um vagão locobreque em cada lado, com garras na parte inferior. Se o cabo de aço arrebentasse, essas garras se engatavam nos trilhos, impedindo que a locomotiva despencasse serra abaixo.

Chamado de Serra Velha, o primeiro funicular operava ao longo de quatro patamares construídos na serra, num trajeto de mais de oito quilômetros. Em cada patamar, havia uma máquina fixa. “Se quisermos colocar o funicular para correr de novo é só chamar os aposentados, trocar os cabos e fazer alguns reparos”, garante Pedro Alves Gonçalves, 75 anos, que se aposentou em 1970, depois de trabalhar quase três décadas na ferrovia. No começo, era foguista, depois maquinista. Ainda na ativa, ele atua no museu ferroviário de Paranapiacaba, que preserva o sistema funicular. Pedro deveria ajudar na manutenção do maquinário, mas acaba fazendo também o papel de guia. “Poucos sabem contar exatamente como tudo funcionava.”

Com o tempo e o aumento da produção do café, o sistema Serra Velha tornou-se insuficiente para a movimentação da ferrovia. Por isso, em 1901, os ingleses implantaram um segundo sistema funicular, que funcionava paralelamente ao primeiro. Batizado como Serra Nova, este segundo funicular tinha cinco patamares e um cabo de aço sem fim, que permitia o engate do trem em qualquer ponto do cabo. Em 1974, esses sistemas foram desativados e substituídos pela cremalheira-aderência, cujo funcionamento é similar ao de uma escada rolante, com a engrenagem da locomotiva deslizando sobre uma correia dentada instalada no meio dos trilhos.