Vamos comer canção, vamos comer poesia. A proposta cantada por Caetano Veloso na música “Vamo” comer (1987) nunca surtiu tanto efeito. Inúmeros restaurantes, teatros e centros culturais resolveram incrementar seus cardápios e passaram a servir um prato exótico, capaz de agradar os mais variados gostos. Seu nome é Sarau, composto com especiarias raras de inegável sabor como música e literatura. Moda nos anos 70, quando serviam de válvula de escape para intelectuais e artistas se manifestarem contra a repressão, os saraus atravessaram um período de apatia nos anos 90 e voltam com força total. O jornalista Pedro Bial, 42 anos, é mestre no assunto. Membro do grupo Ver o Verso, Bial pode ser encontrado na última terça-feira de cada mês no restaurante Copérnico, no Rio de Janeiro, apresentando obras consagradas do nosso cancioneiro ou poemas de sua autoria a partir das 21h30. “Faço versos desde o segundo ano primário”, afirma. Nos anos 80, o jornalista marcou época nos recitais do grupo Os Camaleões. “Éramos mais beatniks, com ar de roqueiros rebeldes. Hoje, demos uma amadurecida, mas sem perder a picardia.”

O Ver o Verso, formado também por Mano Melo, 55 anos, Alexandra Maia, 27, e Claufe Rodrigues, 44, desliza entre diversos estilos literários em seus espetáculos. “Nosso repertório vai da poesia parnasiana de Olavo Bilac até o modernismo de Drummond e Bandeira”, resume Bial. Cada noite, uma dupla de convidados sobe ao palco e divide com os anfitriões parte das leituras. Já passaram por ali personalidades como o poeta Ferreira Gullar e as atrizes Eva Wilma e Maria Fernanda Cândido. A poetisa Alexandra Maia entusiasma-se com o sucesso. “Temos recebido cerca de 250 pessoas em cada encontro. A entrada é gratuita, o que atrai gente de diversas idades e classes sociais”, diz.

Após completar seu primeiro aniversário e lançar o livro Coração na boca (editora Sete Letras), o Ver o Verso consolida-se como um dos grupos promotores de saraus mais importantes do País. Mas há modelos bem diferentes do estabelecido por eles. Em São Paulo, por exemplo, uma turma de jovens resolveu radicalizar e aboliu instrumentos opressivos como palco e microfone. Nas noites de sexta-feira e domingo, em uma sala caoticamente mobiliada com poltronas coloridas, tapetes e sofás no Centro Cultural Elenko-KVA, não existe diferença entre espectador e artista. Reunidos em roda ou espalhados pelo chão, os jovens entre 15 e 25 anos podem levantar a voz a qualquer momento e proferir sua mensagem – em prosa ou verso – ou apresentar performances teatrais e canções. Os mais tímidos até conseguem permanecer calados, mas nunca passivos. “O sarau é uma forma de despertar o potencial criativo de gente de todas as idades e classes sociais. É um resgate do sentimento de comunidade que anda tão em baixa”, acredita Eduardo Rombauer, 20 anos, um dos idealizadores do projeto. Lá, a entrada é gratuita e não há hora para terminar. Os saraus começam por volta das 22h na sexta e 18h no domingo e seguem madrugada adentro. Não raro, os adeptos mais entusiasmados são rotulados de hippies ou freaks (esquisitos) pelos colegas mais caretas.

Estudante de Relações Internacionais, Rombauer promove saraus no Elenko desde 1998. De um ano para cá, começou a incentivar a multiplicação de saraus em diversos pontos da cidade e do Brasil, apoiando iniciativas de outros assíduos frequentadores do Elenko. Juntos, já organizaram um sarau para cegos e mostraram a iniciativa em um assentamento do MST em Nova Esperança, no Paraná. Em São Paulo, a estudante Ana Paula Anjos, 16 anos, por exemplo, experimentou promover um encontro no colégio particular em que estuda, o conceituado Bandeirantes. Em outra ocasião, Eliane Chagas, 22, levou o projeto à escola estadual Filomena Matarazzo, na zona leste, onde faz magistério. “Perco quase duas horas no ônibus para chegar ao Elenko, mas estar no sarau é compensador. Trouxe para minha comunidade, na qual existe uma cultura rica à espera de iniciativas como essa”, explica Eliane.

Informalidade – A maior influência de Rombauer foi o sarau CEP 20.000, tradicional na capital fluminense. Os poetas Chacal, Guilherme Zarvos e Michel Melamed levam ao público um repertório de shows, performances teatrais e recitais de poemas nas últimas terças e quartas-feiras de cada mês no Espaço Cultural Sérgio Porto. “O segredo é a informalidade”, arrisca Chacal, 49 anos, um dos pioneiros do ramo. Semelhante ao evento promovido pelo trio carioca, acontece em São Paulo, no segundo sábado do mês, o Varal dos Charles. Sob a batuta dos palhaços Clerouac e Paulo Federal, irreverência e crítica política se misturam nos esquetes improvisados pela dupla entre uma apresentação e outra. O cenário é o quintal da casa de Clerouac, incrementado com um inusitado varal de roupas. “Idealizamos o sarau em função da falta de oportunidades para o jovem se introduzir no circuito das casas de espetáculo”, conta Clerouac, 35 anos. “Esses encontros acabaram funcionando como um pavio. Muita gente se tornou artista após passar pelo Varau dos Charles”, acredita. O espectador paga o quanto puder – ou quiser – entre R$ 3 e R$ 10.