Como um relógio parado, duas vezes por dia o Rio de Janeiro parece funcionar com precisão suíça. É na hora do rush, momento em que a cidade, berço esplêndido de motoristas famosos por bloquear cruzamento, estacionar em calçada e desdenhar luz vermelha, adere em massa à estrita disciplina da “reversível” – uma coreografia do trânsito em que a Guarda Municipal muda ao som de apitos o sentido de ruas e avenidas inteiras.

O desfile da ordem pública pelos habituais corredores da desordem urbana começa em São Conrado, às seis e meia da manhã, pontualmente, quando os moradores da Barra da Tijuca passam por ali a caminho do centro, pegando ordeiramente a contramão da avenida Niemeyer. Seis guardas, duas picapes e uma motocicleta abrem alas à sua passagem. E o resto eles fazem sozinhos, tacitamente.

Às sete em ponto, a maré de carros deságua no Leblon, onde seis guardas comandam o espetáculo da obediência instantânea a leis que mudam de repente. Parece mágica. Em Ipanema, Copacabana e Botafogo, a orla toda troca de lado ao mesmo tempo. Os automóveis que dormiram virados para o morro Dois Irmãos, como exigia o figurino do tráfego na noite da véspera, acordam de costas para onde terão de seguir, obrigatoriamente, se saírem da vaga. Só às dez horas acaba a “reversível”, quando a cidade retoma o sentido natural das coisas.

É bom para quem tem pressa. Mas há cotidianos que se enroscam nesse intervalo da normalidade carioca. Em Copacabana, por exemplo, quem mora perto da esquina da rua Siqueira Campos com a avenida Atlântica está acostumado a virar à direita, para subir meio quarteirão e entrar na garagem. Durante a “reversível”, tem que virar à esquerda, passar a Hilário de Gouveia, dobrar na Paula Freitas, atravessar a Nossa Senhora de Copacabana, subir a Barata Ribeiro e, duas esquinas adiante, descer a Santa Clara até a praia.

Quem não entendeu o roteiro acima não precisa se sentir perdido. Na hora do vamos ver, todo mundo o entende. É insignificante o número de infrações às normas da convivência civilizada, quando o Rio de Janeiro é metodicamente virado de pernas para o ar. O número de acidentes, para surpresa até dos próprios guardas, em vez de aumentar, costuma diminuir nessas ocasiões. “Graças a Deus”, diz o inspetor Itaharassi Bomfim Junior. “Estou há três anos na coordenação das reversíveis na cidade. E quase não tenho problemas com os motoristas.”

No dia em que alguém levar a sério o projeto de arrumar o Rio de Janeiro, a receita da “reversível” está pronta. É só adicionar um pouco de governo

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Ao todo, 36 guardas dão conta do recado de quase 15 quilômetros de vias revertidas na zona sul, no centro e na zona norte. Nem a Guarda Municipal, que cuida da operação desde 1998, sabe de cor quantos cruzamentos o conjunto das mudanças implica. Em Copacabana e Botafogo, dois túneis se dividem ao meio temporariamente, entre pistas de ida e vinda. Na Tijuca, o sinal da rua General Canabarro fica fechado por três horas seguidas. E, no fim da tarde, a operação recomeça, tomando a direção da volta para casa nas ruas da Leopoldina e do Jardim Botânico.

Tudo isso se encaixa na rotina do carioca, como se ele ensaiasse há muito tempo, organizando carnavais e festas de Réveillon praticamente à prova de bagunça. Não deixa de ser um laboratório social. No dia em que alguém levar a sério o projeto de arrumar o Rio de Janeiro, a receita da “reversível” está pronta. É só adicionar um pouco de governo.


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