Um homem impetuoso, desvairado, atirado, sempre em busca. Com essas palavras, Ignácio de Loyola Brandão descreve o amigo Roberto Freire, 76 anos, na apresentação do livro Eu é um outro, recém-lançado pela editora Maianga. O título, emprestado do poeta Arthur Rimbaud, foi indispensável para que Roberto Freire se sentisse à vontade para escrever uma autobiografia. “Sempre achei detestável chegar ao fim da vida e resolver contá-la. Geralmente os autores mentem. Ao ler essa frase, percebi que sou fruto de encontros com outras pessoas”, justifica. Paulistano, Roberto Freire formou-se em medicina por exigência do pai. Foi cientista em Paris, psicanalista em São Paulo, produziu e escreveu peças de teatro, militou na Ação Popular, foi preso e torturado pela repressão e, como jornalista, ganhou o Prêmio Esso por uma reportagem publicada na revista Realidade. Encontrou o sucesso na literatura com o romance Cleo e Daniel, de 1966, e consagrou-se com a criação da Soma, terapia polêmica baseada na obra de Wilhelm Reich, dissidente de Freud. Divorciado, pai de três filhos e avô de sete netos, Freire perdeu a visão do olho direito por causa de uma infecção hospitalar e, hoje, com a visão esquerda ameaçada por cataratas, lê apenas as manchetes dos jornais. Mas continua com os olhos atentos a suas paixões: o amor e a liberdade.

ISTOÉ – O título de seu livro é Eu é um outro. Quem é esse outro?
Freire –
São vários outros. O primeiro foi meu melhor amigo na adolescência, o Zé Luís. Ele levava a vida que eu queria. Meus pais eram reacionários e queriam que eu fosse médico. O pai dele era poeta. Em sua casa conheci as pessoas que mais admirava: Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Portinari. Zé Luís era marxista e eu me descobri socialista. Houve também Darci Ribeiro, Érico Veríssimo e Plínio Marcos. Uma vez, o Plínio me levou para conhecer seus amigos de infância. Eram todos bandidos e estavam presos. A partir do golpe militar de 1964, fui preso 12 vezes e, na última, saí da cadeia e encontrei o Plínio. “Pô, mestre, soube que você foi preso. Por que desta vez?”, ele perguntou. Disse que tinham me levado para fazer umas acareações e ele me deu uma dura: “Pô, que decadente! Antes você era preso por motivos mais militantes!” Liguei para ele quando teve um infarto e ele tirou de letra: “Nós vivemos do coração. Tinha que dar problema no coração. Se nós fosse intelectuais, nós ia ter é caspa (sic).”

ISTOÉ – Como o sr. se descobriu anarquista?
Freire –
Sempre fui contra o autoritarismo. Tentei pertencer à juventude comunista, mas, na segunda reunião, encontrei uma garota e acabei faltando. Ficaram indignados porque eu preferia “prazeres pequeno-burgueses” à luta marxista. Descobri, anos depois, que o meu lance era o anarquismo. Estava numa livraria e o dono me perguntou se eu era marxista. Disse que era socialista, mas achava o partido comunista autoritário. Ele disse que, nesse caso, eu deveria ser anarquista e me deu um livro sobre Bakunin. Fiquei encantado. Hoje, há muitos anarquistas no Brasil, mas não existe uma federação. Alguns acham que federação é sinônimo de hierarquia. Sou a favor. Recentemente fiz minhas críticas em uma palestra e fui chamado de radical. O radicalismo é minha ética.

ISTOÉ – Como o sr. resolveu criar uma nova terapia?
Freire –
Em 1950, fiz psicanálise. Depois de cinco anos, percebi que era inútil. Em Paris, assisti a uma peça do Living Theatre, um grupo anarquista que foi expulso dos Estados Unidos por se recusar a pagar impostos enquanto durasse a guerra do Vietnã. Fui conversar com o diretor Julian Beck e contei que era anarquista e fazia teatro, mas só conhecia as técnicas de interpretação de Stanislavski, baseadas no pensamento de Freud. Ele contou que preferia Wilhelm Reich. Eu havia feito curso de psicanálise e nunca tinha ouvido esse nome. Esgotei a obra dele e resolvi adaptar sua teoria à nossa realidade, criando a Soma.

ISTOÉ – Como deve agir um somaterapeuta?
Freire –
O principal é não ser autoritário. Se acontece de um
terapeuta se apaixonar por uma cliente, ele pára a terapia e decide
com ela que atitude tomar. O amor é tão importante que é preciso afastar todos os obstáculos. Como um cara apaixonado pode dar
mais importância à terapia?

ISTOÉ – Por que o combate ao autoritarismo está
no centro da Soma?
Freire –
Ele é o grande responsável pela neurose. Toda criança nasce para ser original, mas é obrigada a ser igual a todas as outras para viver em sociedade. Só fica neurótico quem não vive sua individualidade.

ISTOÉ – Por que a Soma é criticada pelos psicanalistas?
Freire –
Somos herdeiros da obra de Reich, um oponente de Freud que, entre as décadas de 20 e 40, defendia que as doenças e as neuroses são frutos da desorganização de nossa energia vital. Observou que, por causa do autoritarismo, a energia deixa de circular pelo corpo e cria o que ele chamou de couraça. Percebeu que o orgasmo consegue desfazer essa couraça e passou a desenvolver exercícios.

ISTOÉ – Exercícios de orgasmo?
Freire –
Chamo de equivalentes orgásticos. Reich propôs e eu desenvolvi na Soma atividades que fazem papel semelhante ao do orgasmo. Dançar de modo repetitivo, bocejar e espreguiçar, por exemplo. A educação autoritária faz com que as pessoas reprimam esses prazeres.

ISTOÉ – A Soma sempre seduziu os jovens. Isso fez com que muitos o chamassem de charlatão. Por quê?
Freire –
Foi a reação da psicanálise à Soma. A Soma é feita para quem acredita que a vida pode melhorar. Quando decide fazer essa terapia, o cara sabe que não vai ter calma até descobrir quem é e o que lhe dá tesão. Para muitos, trabalhar o corpo e falar em liberdade sexual são sinônimos de baixaria. Eu respondo com humor. Quando dizem que a Soma é uma suruba, digo que infelizmente não é. Uma vez, um jornalista me perguntou: “É verdade que o sr. já comeu todas as suas clientes?” Eu respondi: “Não, só as gostosas.” (risos)

ISTOÉ – Anarquista, como o sr. criou seus filhos?
Freire –
Um anarquista não pode ser autoritário. Tive três filhos com Gessy, minha ex-mulher, todos músicos. Estávamos sempre disponíveis para eles, mas não exercemos chantagem ou pátrio poder. O pátrio poder elimina a autonomia dos filhos.