Haja cachaça! Depois de conquistar os Estados Unidos e a Europa e ficar duas semanas em exposição nas vitrines da Saks – festejada loja de Nova York – no último Carnaval, a aguardente de cana sacudiu o setor de bebidas com a Brasil Cachaça 2003, primeira feira internacional dedicada à marvada. Na semana passada, mais de 400 marcas estiveram presentes na Expo Barra Funda, em São Paulo. Entre as atrações, cursos de degustação e de preparo de drinques, exposição e venda de máquinas e acessórios para desenvolvimento da branquinha e até um alambique em pleno funcionamento. “Reunimos marcas do Brasil inteiro e conseguimos atrair empresários e formadores de opinião de outros países para promover a bebida nacional. Recebemos a visita de representantes da Croácia, da Turquia e do Canadá, que ainda não importam cachaça”, anota Dirlene Maria Pinto, presidente da Cooperativa de Produção e Promoção da Cachaça de Minas (Coocachaça) e coordenadora da feira. Na esteira do evento, a Secretaria de Turismo e Cultura de Paraty, no Rio de Janeiro, realiza de 2 a 4 de maio a I Mostra Nacional da Pinga. Sinônimo de cachaça, Paraty pretende reunir produtores de caninhas artesanais de São Paulo, Minas e Rio. “Nossas fazendas preservam a história da produção de cachaça desde o século XVII”, lembra o secretário Zé Pital.

Os exportadores de aguardente não têm do que reclamar. Só no ano passado, foram exportados 14,8 milhões de litros, um crescimento de 15 vezes em cinco anos. Ainda assim, o volume exportado representa 1% da produção, estimada em 1,3 bilhão de litros. “A Escócia vive do uísque. O Brasil poderia produzir cana suficiente para substituir toda a vodca, o uísque e a tequila consumidas aqui e ainda ser auto-suficiente em combustível. Ainda estamos aprendendo a saborear cachaça. No Exterior, ela é apenas ingrediente da caipirinha”, reclama Dirlene. Segundo Murilo Albernaz, presidente da Federação das Associações de Produtores de Cachaça de Alambique (Fenaca), há pelo menos duas mil marcas de cachaças artesanais no País, enquanto as grandes marcas, responsáveis por 80% da produção, não passam de cinco. “Estas conhecem o caminho das pedras para a exportação. O pequeno produtor não. Falta volume, estratégia de marketing e dinheiro para investir”, diz ele.

Vem daí a necessidade de se formar cooperativas de produtores e associações, já existentes em 17 Estados. “O mercado exige o afunilamento das marcas. A maioria das pessoas não sabe dizer o nome de mais de cinco marcas de vodca e dez de uísque. O mesmo vai acontecer com a cachaça”, afirma Albernaz. Se as principais marcas de uísque não passam de dez, o paulista Claide Viniz, maior colecionador da bebida escocesa no mundo, guarda 3.308 rótulos diferentes em sua adega. Na sexta-feira 10, ele participou com outros sete jurados de uma degustação de cachaças no Hotel Hyatt, em São Paulo. “Normalmente, um consumidor de uísque aprecia outros destilados. Tomo cachaça com frequência. Prefiro pedir um uísque em uma casa noturna, mas fico com a branquinha como aperitivo antes do almoço”, diz. “Hoje, a cachaça assumiu o seu lugar. Há algum tempo, pedi-la em um restaurante era uma ofensa ao estabelecimento.”

Nos últimos anos, muitos bares aprenderam a servir cachaça. Deixar gelar a garrafa, por exemplo, é procedimento obrigatório na opinião da publicitária Thelma Bassit, presidente da Confraria Clube da Cachaça de São Paulo, fundada em setembro do ano passado. “A cachaça pode ser tomada com gelo, mas o ideal é guardá-la no congelador. Fizemos o primeiro encontro da Confraria em um restaurante que não servia cachaça e, quando voltei ao lugar, já tinham garrafas na geladeira”, lembra Thelma. A primeira confraria da cachaça
nasceu em Brasília há dois anos e meio. “Além de conhecer marcas
novas e degustá-las, as confrarias contribuem para difundir o hábito
de consumir cachaça em diferentes ambientes”, diz. Os confrades Fernando Amaral e Paulo Rocha fazem coro. “Há muitos tipos de cachaça e pouca gente sabe diferenciar. O barril onde foi envelhecida, por exemplo, tem enorme relevância no resultado. Não gosto de cachaça armazenada em umburana e adoro as envelhecidas em carvalho ou bálsamo”, explica Fernando.
O sucesso das exportações de cachaça ainda esbarra no seu baixo valor agregado. Para cada litro exportado, ficam no País em média US$ 0,80, um valor irrisório se comparado aos mais de US$ 10 cobrados por uma caipirinha em Nova York. Toda cachaça, lá fora, é consumida com limão, gelo e açúcar. Ensinar aos gringos que a bebida pode ser consumida pura é um dos desafios do Programa Brasileiro de Desenvolvimento da Cachaça (PBDAC). Criado em 1997, ele tem contribuído para capacitar o setor e, em parceria com a Apex (Agência de Promoção de Exportações), batalha para que mais produtores alcancem portos estrangeiros. “Os pequenos produtores precisam cumprir as exigências de higiene e qualidade dos importadores, já confirmadas nas grandes marcas. Com isso, as cachaças artesanais poderão chegar ao Exterior como uma bebida de luxo”, alerta Maria José Miranda, gerente nacional do PBDAC. “Mas não podemos esquecer que há dois tipos de consumidor, aquele que paga R$ 0,50 por uma dose e aquele que desembolsa R$ 10 por um gole”, diz ela. Cada um a seu modo, todos contribuem para esvaziar os tonéis.

CACHAÇA OFICIAL

A marvada chegou ao poder. No Palácio do Planalto, ao lado de Lula, está sentado um produtor da dengosa. Há quatro anos, a Fazenda Cantagalo, da família do vice-presidente José Alencar, se enveredou para a arte de produzir birita. Acostumados a tanger gado, os 160 empregados da fazenda aprenderam a lidar com moendas e alambiques desde que 120 hectares de pasto foram transformados em lavoura de cana. O resultado? Uma produção anual de 600 mil litros, comercializada com o rótulo de Maria da Cruz. O nome foi emprestado do município de Pedras de Maria da Cruz, antigo distrito de Januária, no norte de Minas Gerais, onde fica a fazenda. Envelhecida por dois anos em tonéis
de umburanas, a produção tem dado mais trabalho do que os produtores esperavam. “Poderíamos deixar tudo mais fácil se botássemos fogo no canavial e apressássemos o processo de fermentação. Mas perderíamos qualidade. Uma bebida nota dez exige dedicação”, ensina Antônio Gomes, irmão mais novo do vice-presidente. É ele quem administra a fazenda e toma conta do alambique. Consumidor de cachaça, hábito que herdou do pai, Gomes pertence ao conselho da Coteminas, indústria têxtil de Alencar. “Eu e outro irmão fazemos parte do conselho. A Fazenda Cantagalo pertence à empresa. De certa forma, podemos dizer que a cachaça é o novo produto da Coteminas”, brinca ele.