Os americanos são conhecidos por seu formidável apetite consumista. Na terra do tio Sam, compra-se – e vende-se – de tudo. Inclusive bebês, que agora começam a ser adquiridos por lá com a facilidade de quem escolhe um produto num supermercado. Esse consumismo exacerbado, mesmo no templo do capitalismo, choca o resto do mundo. O último lance desse promissor mercado aconteceu há duas semanas. O fotógrafo americano Ron Harris, 66 anos, lançou um site na Internet por meio do qual é possível adquirir óvulos vendidos por modelos. O raciocínio é simples. Ao comprar um óvulo de uma bela mulher, o casal acredita estar levando para casa uma chance de ter um filho tão bonito quanto a mamãe biológica.

Ron Harris não garimpou muito para conseguir suas beldades. Ele conhece muita mulher bonita, já que durante 40 anos vem retratando e filmando modelos lindíssimas. E para ganhar um dinheiro extra, Ron também criava cavalo. Mas o negócio de puro-sangue oscila muito: nem sempre o mercado está bom e o criador acaba ficando com despesas enormes. Foi por isso que, no começo deste ano, ele teve a idéia de juntar suas atividades. “A idéia me chegou com a rapidez de um disparador de câmara”, diz Harris. Ele simplesmente iria leiloar a capacidade reprodutiva de uma seleção de mulheres bonitas.

Desta forma, desde a semana passada, quem tiver dinheiro no bolso – algo que pode ir de US$ 15 mil até US$ 150 mil –, e um mouse na mão, poderá entrar no site da Internet www.ronsangels.com e fazer uma oferta para a compra de um óvulo de alguma das seis modelos da agência. Dependendo das características da modelo é definido um lance mínimo. “Este é um país obcecado por juventude e beleza. Se existem bancos de óvulos e genes de gente inteligente, porque não deveríamos ter um banco de gente bonita?”, pergunta Harris.

Lances – A iniciativa causou furor. Em menos de uma semana, cinco milhões de pessoas entraram na lojinha virtual de óvulos montada por Harris. “Tivemos três lances legítimos. O maior deles foi de US$ 42 mil”, disse Harris. Na verdade, houve suspeita de que tudo não passava de um golpe de marketing. Segundo o jornal The Washington Post uma fonte não identificada da empresa Network Solutions Inc. – especializada em verificar infrações de direitos autorais na Internet – teria notado que a Ron’s Angels pertence a uma mesma corporação que teria 14 sites de pornografia. “Isto está me parecendo um chamariz para conduzir clientes aos nichos pornôs de Harris”, teria dito a fonte. Polêmicas à parte, o lançamento do site veio apimentar o incrível mercado da escolha de bebês nos Estados Unidos. Esse tipo de proposta só é possível porque as leis federais americanas aprovam a comercialização de esperma e óvulos. E essa indústria vai de vento em popa, com um faturamento anual de US$ 3 bilhões.

Nesse mercado, há de tudo, desde books mostrando bebês nascidos com a ajuda da companhia até páginas da Internet que ajudam a pessoa a compor um tipo ideal de doador. É possível comprar óvulos ou espermas de gente que ganhou o Prêmio Nobel ou de gênios que têm mais de 160 pontos de QI. O material genético de pessoas ultra-inteligentes está à disposição no catálogo de empresas como a californiana Cryobank (www. cryobank.com). Os nomes dos notáveis doadores são mantidos em sigilo. Na Ron’s Angels, uma das vantagens é justamente o contrário. As doadoras mostram a cara – seu principal chamariz de venda- e exibem ficha biográfica. Na Options National Fertility Registry (www.fertilityoptions.com) também há fotos dos doadores. “É importante para o casal que vai fazer a escolha obter o máximo de informações sobre o doador. Eles terão de conviver com alguém cheio de material genético desta pessoa”, disse a ISTOÉ Teri Royal, porta-voz da Options. “Os pais estão cada vez mais seletivos. A cada minuto temos cerca de 150 pessoas olhando nossos arquivos pela Internet. O que mais se procura para um bebê são especificações com relação ao cabelo, seguidas de olhos e QI do doador”, diz Royal, que mantém também em seu catálogo alguns membros da Mesa, clube de gente com QI acima de 132, o que significa uma em cada cinco pessoas no país.

Um dos casais que recorreu a esse tipo de banco foi Mark, 33 anos, e Janet Floyd, 32 anos, de Ohio. Quando eles decidiram ter um segundo filho, Janet não conseguia mais engravidar. A idéia foi colocar o mouse em ação para encontrar empresas de fertilização. Apesar das ofertas esdrúxulas apresentadas, o que eles queriam era alguém que se parecesse com Janet. “Examinamos várias pessoas. Não estava obcecada com a aparência da doadora, mas desejava que ela tivesse genericamente a minha aparência.”, diz Janet com seus cabelos lisos e claros. Finalmente eles acharam alguém semelhante à Janet. Na primeira tentativa de fertilização in vitro, os Floyd obtiveram resultado. O bebê Brent – um menino loirinho e muito parecido com a mulher que o carregou no útero – nasceu há dez meses.

Escolha – A febre pela gestação de um bebê perfeito ainda não chegou ao Brasil de forma tão declarada quanto nos Estados Unidos. Primeiro, porque aqui os médicos costumam rechaçar tentativas de casais que queiram escolher o filho como se escolhe o melhor vinho. “Não dou espaço para escolha de características específicas. Se um casal chegasse aqui pedindo um óvulo de uma modelo, mandaria procurar um psiquiatra”, afirma o médico Paulo Olmos, de São Paulo. Em segundo lugar, a indústria não prospera pela simples razão de que a venda de óvulos ou sêmen é proibida. Só é possível obter essas células a partir de doação. Em geral, o que leva as pessoas a doarem é sentimento de solidariedade. A arquiteta paulista M.S.P., 32 anos, procurou a clínica do médico Roger Abdelmassih, em São Paulo, porque não conseguia engravidar. Apesar de ter óvulos saudáveis, a fecundação não acontecia porque seu marido tem poucos espermatozóides. O médico indicou um tratamento hormonal a fim de que M.S.P. produzisse mais óvulos para aumentar as chances de sucesso numa fertilização in vitro. Como produziu 12 óvulos e apenas quatro poderiam ser usados – como recomenda o Conselho Federal de Medicina, M.S.P. optou por doar o excedente na mesma clínica. “Ouvia as histórias de mulheres com dificuldade para engravidar por escassez de óvulos e, já que os meus seriam desperdiçados, pensei em ajudar. Sei o quanto é difícil querer um filho e não poder ter”, diz ela, grávida de oito meses.

Esperança – Na outra ponta dessa cadeia, quem recebe o óvulo ganha uma nova esperança. E em geral, como o desejo de ter um filho é muito grande, nem se pensa em chegar ao cúmulo de escolher uma doadora que seja a cara da Cindy Crawford. Foi o que sentiu a administradora de empresas Mônica (nome fictício), 58 anos. Mônica já tinha uma filha e resolveu ser mãe de novo quando se casou pela segunda vez. Àquela altura ela tinha passado dos 40 anos, idade a partir da qual a produção de óvulos começa a despencar. Depois de algumas tentativas fracassadas de fertilização in vitro feitas com seus próprios óvulos, a administradora foi orientada pelo médico Abdelmassih a tentar uma doação. A sugestão foi bem aceita. “Queria um filho do jeito que ele viesse. Não imaginei em fazer qualquer exigência em relação a alguma característica da doadora”, lembra. Mônica teve seu desejo realizado e sua segunda filha tem hoje quatro anos e meio.

O drama de quem quer um filho, mas tem dificuldades também comove os homens. Só no Hospital Israelita Albert Einstein há mais de 100 doadores de sêmen. “Acho que estou fazendo o bem ao doar meu sêmen”, diz Hamilton, 39 anos. “Mas jamais o venderia. O único lucro que me interessa é saber que estou sendo útil”, completa. O doador representa a filosofia de trabalho no banco de sêmen do Einstein. Considerado modelo, o hospital não paga um centavo a quem doar e cobra do receptor apenas uma taxa relativa às despesas com a estocagem do sêmen. O banco também não negocia com quem bater na sua porta à procura de um sêmen, digamos, ao estilo Brad Pitt. “O banco existe para ajudar casais com dificuldade de ter filho. Não é um supermercado”, afirma Sidney Glina, responsável pelo setor de reprodução humana do Einstein. Afinal, no Brasil o critério para a escolha do sêmen, a exemplo do que acontece com o óvulo a ser doado, se baseia na compatibilidade de características entre doador e receptor.

Ética – Esse tipo de procedimento, no entanto, é resultado mais da preocupação ética dos médicos do que da legislação. Por aqui, não há uma lei que diga, claramente, que um médico não pode atender ao pedido de alguém que deseje um filho mais bonito. Por isso mesmo, alguns médicos se sentem livres para praticar este tipo de “seleção”. No Rio, é possível ir ao Centro de Medicina da Reprodução e pedir um sêmen caprichado. Foi o que fez a arquiteta Ana Lúcia Moraes e Souza, 36 anos. Solteira, ela resolveu ter um filho e procurou ajuda na clínica. Numa lista de cerca de 30 doadores europeus, escolheu um físico, de 1m94, loiro, de olhos verdes, amante de música e esportes. “Escolhi um doador alto porque de baixinha basta eu. Se posso escolher o melhor, por que não?”, indaga. “Escolhi bem para que venha um bebê lindo e crânio”, completa. A arquiteta não sabe se seu projeto de filho vai dar certo. A primeira inseminação foi malsucedida e agora ela se prepara para outra tentativa. O especialista em fertilização Luis Fernando Dale, diretor do centro, que chegou a ser procurado pela apresentadora Xuxa quando ela pensava em fazer inseminação, não considera falta de ética ajudar uma mãe solteira a ter um filho. “Se a mulher tiver condições psicológicas para ser mãe, tem todo o direito de ter sua maternidade concretizada. Não cabe ao médico questionar se ela tem marido ou não”, justifica. Dale também não acha absurdo o fato de a arquiteta ter escolhido um doador com características físicas diferentes das dela. “Ela optou por características que sonhava para um marido. O mais importante é que a criança também tenha semelhanças com a mãe para não se sentir uma estranha”, conclui.

Nada garante, no entanto, que Ana Lúcia, assim como os compradores de óvulos das modelos americanas oferecidas por Harris, tenham o seu pequeno príncipe. Ao comprar um sêmen ou um óvulo na esperança de ter um filho bonito ou inteligente, pode-se estar levando gato por lebre. É célebre a história atribuída ao dramaturgo Bernard Shaw. Ele foi procurado por uma mulher linda que queria ter um filho com ele para unir a beleza dela à inteligência dele. Shaw respondeu candidamente: “Imagine se nascer uma criança com a minha beleza e a sua inteligência?” Quem não conhece um casal amigo belíssimo e que tem um filho, digamos, simpatiquinho? É fácil entender caprichos biológicos como esse. A primeira razão é que não existe um único gene da beleza. Cláudia Schiffer não é o que é porque recebeu o gene da beleza do seu pai e da sua mãe. Foi a combinação feliz de um extenso material genético que resultou em traços tão lindos. Ninguém garante, porém, que um filho da modelo seja a cara dela. Afinal, o material genético que a criança herdará do pai também pesará na balança. Além disso, há ainda heranças de antepassados. O que resultará do mix genético entre duas pessoas, portanto, é sempre uma incógnita.

Tudo isso acontece porque há muitos genes em jogo. Mas existem algumas características físicas que são determinadas somente por um par de gene e, por isso, são mais fáceis de serem herdadas. As covinhas e as sardas são exemplos. “Se o pai tiver sardas, há 50% de chances de seu filho nascer com as mesmas pintinhas”, diz Síntia Nogueira, biomédica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Quando se parte para a procura de um sêmen ou de um óvulo de um gênio, a chance de ter um pequeno Einstein em casa é menor ainda. Sabe-se que existe um peso genético para a inteligência, assim como para o temperamento. Nesses casos, no entanto, além da complexidade genética, a manifestação desses atributos dependerá muito do ambiente em que a criança for criada. Ou seja, o quanto ela foi incentivada a desenvolver suas capacidades. “A genética não manda em tudo”, esclarece o geneticista Walter Pinto, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Como se vê, o sonho de construir um bebê sob medida é mais difícil do que se imagina. As únicas características que podem ser escolhidas com certificado de garantia são o sexo e a não propensão a determinadas doenças genéticas. Para se escolher o sexo, há duas técnicas. Uma seleciona os espermatozóides antes da inseminação ou da fertilização in vitro (o bebê de proveta). Uma das formas de fazer essa seleção é pesar cada célula. As mais pesadas correspondem às que carregam o material que determinará o sexo feminino. A partir daí, introduz-se apenas essa célula no óvulo. A técnica mais eficaz, no entanto, é a que analisa o código genético do embrião dois dias depois de ele ter sido formado em proveta. É nesse procedimento, chamado diagnóstico pré-implantacional, que também é verificada a existência de genes que possam determinar o desenvolvimento de algumas doenças, como a Síndrome de Down. “Se o embrião for portador de algum gene desse tipo, não será usado”, explica o médico Roger Abdelmassih.

No Brasil, oficialmente a opção só é permitida para reduzir os riscos da criança nascer com alguma doença genética ligada ao sexo. A hemofilia é um exemplo. “Quando a mãe tem antecedentes familiares da doença e seu parceiro não, a chance de ter um menino com o problema é de 50%. Enquanto as meninas serão, no máximo, portadoras do gene, mas não doentes”, explica o geneticista Roberto Muller. Por isso, esse casal deve ter o direito de tentar a gestação de uma menina. No entanto, alguns especialistas acabam ajudando as suas pacientes a realizar o sonho de ter um menino ou menina. “Realizamos a biópsia pré-implantacional para casais que apresentem risco de doenças ligadas ao sexo. Para atender os pedidos dos que somente desejam escolher o sexo por preferência, usamos o método da separação dos espermatozóides. Como essa técnica não tem 100% de eficácia, não considero que esteja fazendo uma ‘sexagem’ nesse caso”, conta o médico Eduardo Motta, de São Paulo. Da mesma forma que alguns casais buscam concretizar as fantasias que têm sobre o futuro filho, outros vêem na prévia seleção uma distorção moral. A professora Edi Oliveira, 36 anos, tenta engravidar há nove anos. Já fez três inseminações artificiais e três fertilizações in vitro, sem sucesso porque o embrião não se fixa no seu útero. “Continuo tentando um filho, mas nem no desespero compraria óvulo de uma modelo. Prefiro adotar uma criança”, diz.

Julgamento – Num assunto tão especial às pessoas como o sonho de ter um filho, é difícil fazer julgamentos sobre as aspirações que cada um tem para seu próprio bebê. É claro que todo mundo gostaria de ter uma criança saudável, bonita e inteligente. O risco é levar essas expectativas às raias da paranóia. “Ter um mundo de pessoas loiras, altas e magras é uma forma de ‘purificação’ da raça humana. Isso é eugenia, prática condenável”, lembra o professor de bioética Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília. O professor tem razão. Basta lembrar que não muito tempo atrás um certo Adolf Hitler propunha essa mesma purificação. Extrapolações como essas, no entanto, não podem apagar o brilho de conquistas da ciência. É por isso que os especialistas começam a discutir cada vez mais essas questões. O ideal é que ética e ciência devem caminhar juntas.