Ter simpatia por artistas portugueses era ainda considerado uma posição antinacionalista no início do século passado, quase 100 anos depois da Independência. Mesmo assim, o escritor carioca João do Rio (1881-1921) se lixava para a opinião corrente e fazia questão de manter relações cordiais com intelectuais lusitanos. Entre eles estava o poeta João de Barros, a quem saudou em uma carta: “A nossa amizade rutila sobre os oceanos”. Esse desprezo pela xenofobia reinante, somado ao fato de sempre ter sido visto por parte da intelectualidade como um “escritor das ruas”, teria sido um dos motivos que levaram ao ostracismo a obra do cronista nas décadas posteriores. Ela está sendo agora contextualizada em um livro que reúne justamente a correspondência inédita que ele manteve com amigos da “terrinha”: “Cartas de João do Rio a João de Barros e Carlos Malheiro Dias” (Funarte), organizado pela pesquisadora Cristiane D’Ávila.

chamada.jpg
PUNIÇÃO
Defesa de Portugal foi um dos motivos que levaram o autor ao ostracismo

João do Rio pode ser lido hoje como um exemplo de incorreção – ou então, de politicamente incorreto. As cartas lançam luz sobre um lado desconhecido do que chamava de “miséria sentimental”: a paixão platônica por algumas brilhantes mulheres de seu tempo. Além de ir contra o senso comum, a língua afiada do cronista não poupava os poderosos: chamava o então presidente Epitácio Pessoa de “idiota” e de “grupinho miserável” os detratores da revista “Atlântida”, que ele a todo custo mantinha em circulação. O seu maior opositor era o jornalista e escritor mineiro Antônio Torres (1885-1934), que integrava o “movimento nativista” Ação Social Nacionalista – coisa que desaguaria no integralismo, é claro. Para irritação do cronista, ele condenava toda influência lusa plantada desde a colonização. 

IEpag106_DomJoao.jpg

Desmascarando a mesma visão no pensamento corrente que apostava em outro destino para o Brasil, caso tivesse sido colonizado pela França ou Inglaterra, João do Rio remava contra a maré. “Tenho sido insultado em todos os tons. Eu sou o Bolo-Pacha, vendido aos portugueses”, escreve numa carta datada de 1920, comparando o tratamento que recebia dos inimigos à condenação à época de um famoso traidor francês. Se aqui se ofendiam os portugueses, é certo que também em Portugal se destratavam os brasileiros. João do Rio registrou isso: “Aí em Portugal passaram a descompor todos os brasileiros, chamando-nos de macacos e dizendo que nos civilizaram”.