Um brasileiro precisaria de um programa de milhagem turbinado para viajar o País de Norte a Sul e ver de perto o que os franceses estão tendo a sorte de apreciar em pouco mais de duas horas. Distribuída em 12 salas pintadas de roxo litúrgico, e organizada em balcões que se alongam como elipses, a mostra Brasil barroco – entre céu e terra, aberta na terça-feira 2, no Petit Palais, em Paris, é o mais completo panorama já feito no gênero. Reunindo 322 peças de autoria de artistas como Aleijadinho, Mestre Valentim, Manuel da Costa Ataíde e Francisco Xavier de Brito, entre outros, o expressivo conjunto reúne imagens, pinturas, aquarelas, fragmentos arquitetônicos, prataria e ourivesaria provenientes de 49 coleções públicas e privadas de Belém do Pará até a região das Missões, no Rio Grande do Sul – incluindo, obviamente, os tesouros sacros vindos de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. Como nunca aconteceu antes, santas com rosto de índia, reis magos com pinta de samurai e anjos mulatos dividem o mesmo espaço, dando a dimensão e os contornos da primeira arte genuinamente nacional.

Na noite de inauguração da mostra, que fica em cartaz até fevereiro, o ministro da Cultura, Francisco Wef-fort, bradava como um d. Pedro I a Independência do Brasil em relação à imagem estereotipada de país do Carnaval e do futebol. “Estamos mostrando nessa imensa caixa de ressonância que é Paris o melhor da nossa arte, sua originalidade e diversidade excepcional.” Não é de hoje, no entanto, que os franceses sonhavam com um evento parecido, manifesto desde que o crítico de arte Germain Bazin generosamente batizou, na década de 60, o arquiteto e escultor Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, de “Michelangelo dos Trópicos”. Guiados pelo olhar de Bazin, eruditos como Gil-les Chazal, diretor do Museu de Belas Artes de Paris, o Petit Palais, e Edouard Pommier, inspetor-geral dos museus da capital, conseguiram entender os traços que diferenciavam o estilo da Colônia do praticado durante os séculos XVI e XVII nos países europeus. Angelo Oswaldo de Araújo Santos, secretário de Cultura do Estado de Minas Gerais, curador da mostra ao lado de Chazal e Pommier, explica o impacto que as imagens e pinturas do período provocaram nos estudiosos estrangeiros. “Nosso barroco é doce, de linhas suaves, sem a tragédia que marca o estilo espanhol, por exemplo.”

Resistências – Durante dois anos, o trio de curadores viajou por várias cidades brasileiras em busca de peças significativas para a mostra. Não contaram com a colaboração da cidade mineira de Congonhas do Campo, que se recusou a emprestar uma das capelas do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, cujo conjunto é considerado a obra máxima de Aleijadinho. Enfrentaram também a resistência de algumas comunidades que temiam ceder o santo de devoção para uma viagem além-mar. Mesmo assim, foi uma operação e tanto, que totalizou 14,5 toneladas de carga, remetidas em três vôos diferentes, como se faz com astros de rock. Todos estes detalhes ficaram a cargo da empresa paulistana Expomus, cuja proprietária, Maria Ignez Mantovani Franco, encarregada de negociar os empréstimos, colecio-na casos antológicos. Na remessa para São Paulo, de onde as peças eram embarcadas para Paris, do Santo Alexandre, pertencente ao Museu de Arte Sacra de Belém do Pará, houve um problema com o cargueiro. Era véspera do Círio de Nazaré e imagine a confusão. Maria Ignez teve a sorte de despachar o santo pelo avião dos correios. “Vim na cabine junto com o piloto”, lembra.

Idealizada pela União Latina, a exposição consumiu US$ 3 milhões, divididos entre a Prefeitura de Paris, o governo brasileiro e a iniciativa privada, que teve no Banco Safra o maior colaborador. Além de ser a primeira comemoração dos 500 anos do Brasil no Exterior, a exposição integra o calendário oficial dos festejos do ano 2000 em Paris e do centenário do Petit Palais, que deve receber um público de 400 mil pessoas. Nos cinco módulos, que seguem uma linha histórica evolutiva, o visitante se envereda por um ambiente que leva à introspecção e à reverência. Para criar um clima ainda mais propício, reproduções em tecido das pinturas das naves de algumas igrejas – aquelas que cederam as peças – cobriram o teto de algumas salas. Tudo idealizado pelo arquiteto Massimo Quendolo, sempre lembrado nas montagens do Museu do Louvre e do Museu D’Orsay. “Queria transmitir emoção e um sentimento de recolhimento”, explicou o arquiteto. A colecionadora e diretora de exposições do Museu de Arte de São Paulo (Masp) Beatriz Pimenta Camargo, que cedeu cerca de 80 peças, chorou ao conferir o resultado final. “É um motivo de orgulho para nós”, afirmou. É de sua coleção, por exemplo, o São José de Botas, do século XVIII, que chama a atenção pelo inusitado. Emocionada também ficou a colecionadora mineira Angela Gutierrez, que emprestou dez oratórios e uma série de Santanas. “Só quem é tocado pela fé sabe o que a gente sente”, disse. Entre os oratórios, aquele batizado por ela de “Carmen Miranda” traz a marca da talha dos negros nas cores e nos detalhes de flores e frutos.

Mas nada se compara em exuberância às duas salas dedicadas a Aleijadinho, síntese e maior expoente do barroco. Sua Nossa Senhora da Dores, do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo, comove pela expressividade que, levada a extremos de delicadeza, se repete na Santana Mestra, do Museu do Ouro, em Sabará. O artista plástico Frans Krajcberg acredita que a exposição representa um passo para uma plena avaliação do mestre de Congonhas. “Ele ainda não teve o reconhecimento que merece”, garante. Os franceses que botavam os óculos na ponta do nariz para conferir suas obras ficaram sem saber, contudo, que Aleijadinho trabalhava com as mãos vitimadas pela lepra, já que os painéis explicativos deixaram muitos detalhes, como esse, de fora. Ainda assim é uma exposição vibrante, ao mesmo tempo que didática. “O barroco é a fundamentação da cultura brasileira. É seu fator de unidade e permanência”, disse Pommier. Como consultor da União Latina, o empenho do francês na realização da exposição foi fundamental. Segundo ele, sua maior comoção foi ter visto as peças nas igrejas durante as três viagens que fez ao Brasil. “Você nunca está preparado para a sensação de estar diante da obra, fora do livro. Foi fascinante.” Um fascínio que ele agora tenta dividir com seus conterrâneos.