Os sonhos sempre motivaram o fascínio, até mesmo temor, na história das civilizações. Antes do lançamento do livro A interpretação dos sonhos de Sigmund Freud, há 100 anos em Viena, a atividade onírica tinha mais sentido para videntes e bruxos do que para a medicina. Magos chegavam a interpretar os sonhos como mensagens do Além. A partir do dia 4 de novembro de 1899, o mundo passou a considerar o sonho como uma janela por onde se poderia enxergar partes até então inacessíveis da mente. Interpretá-lo passou a ser uma forma de trazer à tona os desejos humanos mais inconfessáveis. Ao longo de um século, porém, esse clássico da literatura freudiana sofreu todo tipo de ataque das chamadas neurociências, que buscavam provas cabais, resultados incontestáveis em laboratório, das idéias do pai da psicanálise. Até certo ponto, a pergunta “o que é o sonho?” continua em aberto. Mas, com a ajuda de novas tecnologias, está se provando que Freud estava no caminho certo quando usou o sonho como um instrumento para atingir o inconsciente.

Segundo Freud, os sonhos expressariam por meio de símbolos os desejos que a consciência reprime. Durante o sono, a força da consciência ficaria rebaixada. O inconsciente passaria a dirigir o trabalho da mente. O sonho teria, então, a função de evitar que os desejos não mais reprimidos interrompessem o sono. Essa seria a essência da teoria freudiana. Interpretar a história contada pelo sonho transformou-se numa forma terapêutica de lidar com questões psicológicas que a consciência não permite. Bem, poucos psicanalistas acreditam hoje que o sonho proteja o sono. Mas a idéia básica freudiana de que são mensagens produzidas dos cantos mais recônditos da mente está mais forte do que nunca.

Mesmo essa idéia, porém, já chegou a ser refutada. Neurologistas passaram a argumentar que Freud estava completamente errado depois que, em 1953, se descobriu um estágio do sono denominado REM (de Rapid Eyes Movement, ou movimento rápido dos olhos). Eletrodos ligados à cabeça mostraram que durante o REM a atividade cerebral é tão intensa quanto a observada quando se está desperto. Mais intrigante ainda foi a constatação de que, ao ser acordado durante o REM, os pacientes diziam que estavam sonhando. Ao estudar as partes do cérebro que comandam o REM, descobriu-se que elas tinham a ver com reflexos como respirar e não com sentimentos como o desejo e o temor. Portanto, chegou-se a concluir, Freud deveria estar errado. Os sonhos seriam nada mais do que imagens aleatórias, produto de descargas elétricas cerebrais, resquícios da memória diurna.

No entanto, pesquisas mais recentes mostraram que a atividade REM e o sonho são coisas distintas. Foram estudados pacientes acidentados que ficaram impedidos da atividade REM, mas continuaram a sonhar. Outros, com danos em partes do cérebro que os impediram de sonhar, permaneciam tendo o REM. Novas tecnologias que reproduzem com maior precisão o que se passa no cérebro provaram que, durante o sonho, as partes que envolvem as emoções estão em plena atividade. O que explica por que os sonhos podem ser experiências tão intensas e emotivas. Por outro lado, a parte que controla ações racio-nais ficam desativadas. O que também ajuda a entender por que os sonhos são frequentemente ilógicos, irracionais e sem muito sentido.

A partir daí, voltou a controvérsia. Os neurologistas argumentam que a parcela do cérebro envolvida com símbolos fica relativamente quieta durante o sonho. O que derrubaria a idéia de que o sonho é uma mensagem simbólica do inconsciente. O máximo que eles admitem é que o significado do sonho está na superfície do processo mental, e não nas profundezas do subconsciente como defendem os psicanalistas. A imagem de uma maçã seria apenas uma maçã, e não algum desejo inconfessável pelo pecado da gula ou da traição sexual. Controvérsias à parte, o que fica é a inegável importância das idéias contidas nesse clássico, muitas das quais incorporadas à cultura popular mesmo sem a certeza de estarem certas ou erradas.