Em seus tenros três anos, Paula Soares nunca viu e nem sabe que Xuxa e Angélica existem. E, se prevalecer a vontade dos pais, o livreiro José Soares e a historiadora Anita Almeida, durante um bom tempo continuará alheia ao banquete tatibitati das loiras. Ao contrário do que possa parecer, Paula não vive confinada numa bolha de plástico nem reside em algum canto esquecido do País. Mora no Rio de Janeiro, no agradável bairro de Santa Tereza, e leva uma vida normal. Só não assiste à televisão de forma indiscriminada, como fazem milhares de crianças no Brasil e em quase todo o mundo. Para a pequena Paula, o eletrodoméstico quadradão no meio da sala funciona apenas para sessões de vídeo com desenhos dos estúdios Disney e outros até mais sofisticados, entre eles os da série Anima mundi, que reúne curtas-metragens de animação premiados internacionalmente. "Não quis nem a tevê por assinatura porque os desenhos são de péssima qualidade", diz o pai, José, uma exceção num conjunto de situações niveladas.

Uma pesquisa obtida com exclusividade por ISTOÉ, feita pelo Ibope Mídia em novembro do ano passado, revela que as dez atrações mais vistas por crianças e adolescentes entre dois e 14 anos, num universo estimado de 11,08 millhões, são destinadas aos adultos (leia abaixo). Coincidentemente são todas da Globo. A lista não inclui nenhum programa infantil e a novela das oito desponta em primeiro lugar com 19% da audiência. Interessado em disciplinar o acesso à televisão e a combater a influência exercida por ela na formação das crianças, Wagner Bezerra, especialista em marketing político e ex-diretor de programas educativos na TVE do Rio de Janeiro, é um dos que começaram a dar voz aos descontentes. Ele é autor do ainda inédito Manual do telespectador insatisfeito antenas ligadas desliguem a TV, que deverá ser lançado neste semestre. Ainda que revestido com figurino acadêmico – na verdade trata-se de uma tese para a Escola de Políticas Públicas e Governo da Universidade Federal do Rio de Janeiro –, o livro é bem elucidativo e funciona como um guia prático de como se defender, principalmente as crianças, da televisão. "Um serial killer de cérebros infantis", segundo uma das citações.

A idéia de escrever o manual começou em 1993 quando Bezerra ficou estarrecido ao ver o filho Vital, então com seis anos, na sala assistindo a uma sequência de um strip-tease masculino, exibido na novela da Rede Globo De corpo e alma. "Fiquei perplexo. Meu filho não precisava lidar com aquilo naquela idade." É o que também acham os especialistas. Yves de La Taille, psicólogo e autor do recém-lançado livro Limites: três dimensões educacionais, adverte: "A tevê dá acesso a um mundo que as crianças não compreendem bem, e precipita situações que a família ainda não sabe trabalhar como sexo, morte ou cenas terríveis." Para evitar situações como esta, Bezerra reivindica em seu Manual a ampliação do espaço para programas mais educativos. "Está provado que a tevê pode educar sem ser chata. O diretor Cao Hamburguer vendeu sanduíches numa propaganda educativa do McDonald’s", diz ele, referindo-se aos divertidos comerciais com o professor de português Pasquale Cipro Neto. Hamburguer tem no currículo a premiada série Castelo rá-tim-bum da Rede Cultura e recentemente foi contratado pela Globo, interessada no modelo bem-sucedido da emissora estatal. "O que pode educar não precisa ser necessariamente ruim ou significar baixa audiência", diz Hamburguer.

Não adianta, contudo, ter uma programação infantil melhor se, como prova a pesquisa do Ibope, a criança acaba ficando refém da televisão nos horários mais impróprios. Para Flávio Ferrari, diretor-executivo do Ibope Mídia, isso ocorre porque os filhos assistem aos programas vistos pelos pais. "Elas não escolhem ver o Jornal Nacional, sabem que aquele programa não é para a idade delas, mas estão na sala naquele horário", diz ele. Ferrari fala que é ingenuidade, porém, pensar que as crianças estejam passivas. Desde que seus filhos Rodrigo, 13 anos, e Guilherme, 11, eram menores, ele era surpreendido com perguntas sobre precatórios ou quedas das ações nas Bolsas de Valores. Seu maior temor é a exposição às novelas, segundo ele, muito piores do que uma eventual cena de sexo ou violência. O onipresente folhetim global das oito vem sendo condenado por muitos outros pais e, em algumas cenas, até mesmo pela própria Globo (leia abaixo). Quando a novela entra no ar, Bia Rosenberg, responsável pelos programas infantis da Cultura, tira a filha Luisa, de dez anos, da frente da televisão. "As relações são deturpadas e tensas", diz.

A pesquisa do Ibope Mídia mostra que pais preocupados com o assunto são uma exceção. Segundo a professora universitária Raquel Paiva, a missão de educar os filhos é dos pais e da escola. "É por isso que toda criança quer ser Chiquititas. O que esta pesquisa revela é uma catástrofe", opina. "O jeito com que elas ficam expostas indica uma forma de pedofilia da sociedade." Raquel tem suas regras para impedir que a filha Gabriela Paiva, sete anos, venha a se tornar uma presa fácil da programação da tevê. Simplesmente bloqueou os canais abertos e até alguns pagos da televisão do quarto da filha. Tevê aberta, só na sala, e na companhia de adultos.

Diante dos fatos, a solução menos trabalhosa, mas certamente mais radical, é simplesmente desligar a televisão. Nos Estados Unidos, a organização não-governamental TV-Free America vai propor mais uma vez à população que mantenha por uma semana a televisão fora da tomada, entre os dias 22 e 28 de abril. A organização vem cultivando este protesto desde 1995, e até hoje conseguiu 12 milhões de adesões. Afinal, crianças americanas em idade pré-escolar assistem em média a quatro horas diárias de televisão. Segundo estatísticas obtidas pela psicanalista Ana Olmos, especialista em infância e adolescência, na Europa o índice cai para pouco mais de três horas. Mas a excessiva exposição também existe por lá. Na França, por exemplo, é a distração favorita para 75% dos pimpolhos, enquanto na Espanha, 96% delas, em idade de quatro a dez anos, vêem tevê diariamente. É bom não esquecer a conta feita pelo pesquisador espanhol Juan Ferrés. Ela mostra que quem mantiver a média diária de 3h12 diante da telinha ao longo de 50 anos terá passado oito anos em frente à televisão.

Colaborou Rita Moraes

 

Em busca da ética perdida

Pressionadas pela sociedade e pela Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, as emissoras estão se mexendo para dar um basta à baixaria. Pelo menos aparentemente. Fala-se na criação de manuais próprios, de ombudsman e de departamentos que controlem a qualidade da programação. Ou ainda na atualização do caduco código de ética da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que não tem dado conta do recado. Tudo para fugir da idéia de um controle externo sobre a programação, como gostaria José Gregori, secretário de Direitos Humanos.

Até o Domingão do Faustão cedeu e resolveu adotar um código interno de ética. É um dos primeiros passos da Rede Globo, que se arma no assunto com a criação da Central de Controle de Qualidade. O novo departamento deve entrar em funcionamento no fim do mês, quando será anunciada a programação de 1999. Mário Lúcio Vaz, que ainda ocupa a Central Globo de Criação, será o diretor do setor. Na emissora, garantem que ele terá total poder de veto. Tanto poderá passar a caneta vermelha na sinopse de uma novela ou numa atração que já estiver no ar.

Uma fonte da Globo, entretanto, não está muito convencida de que o papel será exercido em sua plenitude. Vaz já respondeu por atribuição semelhante. Recebia semanalmente os relatórios de Mauro Borja Lopes, o Borjalo, e de Homero Sanches, apontando as supostas situações ofensivas à moral e aos bons costumes. Só que à época, Mário Lúcio Vaz ganhou do falecido diretor Paulo Ubiratan o apelido de Muro Lúcio pela vocação tucana de não discordar de nada. Por essas e outras, seu cargo foi recebido com galhofa entre os velhos conhecidos. Em novo papel, o xerife da qualidade está instruído para jamais dar entrevistas.

Celina Côrtes