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A má vontade da torcida brasileira com a seleção nacional de futebol é mais complexa do que imagina nossa filosofia. O inexpressivo futebol praticado pelo time de Felipão não é o bastante para explicar as vaias que a Seleção Brasileira recebeu recentemente no Mineirão. Para entendê-la, precisamos voltar ao comecinho dos anos 70, mais precisamente a 1971, 1972 e 1973 — época do “milagre brasileiro” na economia, do Brasil que ia pra frente e das praias ensolaradas.

Primeiro, recapitulemos. Em 1958, com Pelé, Garrincha, Didi & Cia, o Brasil voltou da Suécia como campeão mundial. A Copa foi acompanhada ao vivo somente pelo rádio. Apenas 2 milhões, dos 65 milhões de brasileiros da época, puderam ver a Seleção Brasileira pela televisão — e mesmo assim com uma semana de atraso. Em 1962, a Copa do Mundo foi disputada mais perto, no Chile, mas continuou dominada pelo rádio, pois a televisão só exibia os jogos dois dias depois que eles ocorriam. Mais um título e a mística dos melhores jogadores do mundo fortalecida. Em 1966, certa de que ganharia o tricampeonato na Inglaterra, a então CBD (Confederação Brasileira de Desportos) reuniu nada menos de 47 jogadores para formar o time que disputaria a Copa de 1966. A soberba e a desorganização resultaram numa campanha pífia, com eliminação logo na primeira fase.

Finalmente, em 1970, pela primeira vez os jogos da Copa do Mundo foram transmitidos ao vivo para o Brasil. Com Pelé, Gerson, Clodoaldo, Rivellino, Tostão, Jarzinho, Carlos Alberto e vários outros jogadores em excelente condição técnica e física, a Seleção Brasileira proporcionou aos olhos dos torcedores brasileiros, via telinha, um espetáculo inesquecível. Na campanha do México, o Brasil não apenas garantiu a posse definitiva da cobiçada Taça Jules Rimet (disputada desde 1930), mas também humilhou alguns adversários, com placares recheados de gols: 4-1 contra a Tchecoslováquia, 4-2 contra o Peru, 3-1 contra o Uruguai e 4-1 contra a Itália na grande final.

Portanto, não havia mais dúvidas. Os brasileiros viram, com os próprios olhos, aquilo que imaginavam desde 1958: aqui se praticava o melhor futebol do mundo. O Brasil era imbatível e só perderia para ele mesmo (como em 1966) se fosse muito desorganizado. Eram 90 milhões em ação esfregando as mãos para a chegada da Copa de 1974, na Alemanha, quando começaria a disputa por um novo troféu, a bonita Taça Fifa, também esculpida em ouro. Tudo levava ao otimismo. Em 1971, a CBD criou oficialmente o Campeonato Nacional, com todos os craques do tri disputando jogos pelo Santos, Botafogo, Corinthians, São Paulo, Flamengo, Cruzeiro, Palmeiras, Atlético Mineiro, Fluminense etc. Pelé, rei do futebol, nem considerava a hipótese de trocar o Santos por um time estrangeiro.

Veio 1972 e, por ocasião da comemoração do Sesquicentenário da Independência (150 anos), a CBF promoveu a chamada Minicopa, com a presença de 20 seleções da Europa, das três Américas e da África. Os jogos foram disputados durante quase um mês em 12 capitais de todas as regiões do país. Tudo dava tão certo que a Taça Independência foi disputada por Brasil e Portugal, no Maracanã, diante de 99.138 pagantes. Deu Brasil, 1-0, gol de Jairzinho, aos 44 minutos do segundo tempo. Alguma dúvida de que o Brasil tinha os melhores jogadores do mundo?

Se não bastasse isso, o Brasil ganhou também o Campeonato Mundial de Fórmula 1 pela primeira vez, com Emerson Fittipaldi. Ninguém “segurava a juventude” do Brasil. O ano de 1973 foi apenas um interregno entre a coroação consumada de 1970 e a coroação certa de 1974. Mas nos campos da Alemanha quem brilhou foi a Holanda de Johan Cruyff e a Alemanha de Franz Beckenbauer. A bola da torcida deu uma baixada, mas o Brasil perdeu a Copa de 1978, na Argentina “só porque os jogadores peruanos se venderam” para os donos da casa. Terceiro lugar invicto, como uma viúva virgem, e o título de “campeão moral” decretado pelo polêmico técnico Cláudio Coutinho. Entretanto, com o título mundial do Flamengo em 1981 e a ótima fase de Zico, Sócrates, Falcão, Toninho Cerezzo, Júnior, Eder e Oscar, o Brasil se credenciou para ganhar o Mundial de 1982, na Espanha. Todos os jogos da Seleção Brasileira no país, entre 1980 e 1982, era um festa do futebol. A arte tinha voltado, a seleção estava nos braços do povo. Apesar de ter perdido o Mundialito de 1980, no Uruguai.

Mas, naquele inconcebível 5 de julho de 1982, em Barcelona, o italiano Paolo Rossi fez três gols e mudou a história do futebol brasileiro. O país passou a ser um exportador de craques. A Seleção Brasileira começou a ficar cada vez menos brasileira. A cada convocação, os “brasilianos” que jogavam na Itália eram em maior número. Não bastasse isso, uma nova derrota em 1986, para a França, sepultou o futebol-arte e ele nunca mais deu as caras num time da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). O brasileiro passou a jogar como o europeu. A mística do jogo bonito ficou só na cor do uniforme amarelo, azul e branco da seleção e em raros craques. Foi preciso adotar um conceito europeu para conquistar a Copa de 1994, nos Estados Unidos, mas a alegria do povo nem se comparava com o êxtase dos três primeiros títulos, especialmente o de 1970. Cada dia mais europeia, a Seleção Brasileira ainda ganhou o Mundial de 2002, aproveitando a fragilidade da maioria dos adversários que enfrentou e também a ótima fase de Ronaldo e Rivaldo, como de Romário e Bebeto em 1994.

Nos últimos anos a Seleção Brasileira passou a ser um simples negócio da CBF. Quase 100% dos atletas estão bem longe dos times do povo, como Flamengo, Corinthians, São Paulo, Vasco da Gama, Cruzeiro e Internacional. Falsos mitos foram criados: a lista vai de Robinho a Kaká, de Ronaldinho Gaúcho a Luís Fabiano. A maioria dos jogos é feita em outros países, distante da torcida. Os estádios de Londres passaram a abrigar mais jogos do Brasil do que o Maracanã. Cada vez menos interessada na Seleção Brasileira, a torcida passou a preferir seus clubes. Ter um jogador convocado é desfalcar o time de coração e ainda incutir no craque aquela soberba normalmente vista nos brasileiros europeizados.

Mas hoje vemos a soberba da torcida!

Apesar de todo esse histórico, vaiar a própria seleção de seu país num jogo em casa, antes de a partida terminar, é uma demonstração de soberba também da torcida. Pois parte dela, talvez a maioria, ainda acha que estamos em 1971, 1972 ou 1973. Esse tempo passou. O futebol mudou. Os jogadores mudaram. O espírito da Seleção Brasileira mudou. Futebol não é teatro nem circo. A torcida hoje faz parte do time. Ela tem o poder de motivar os jogadores, de encurralar os adversários. É assim que os jogos da Seleção Brasileira devem ser vistos. É inadmissível que os torcedores pintem a cara com as cores do Brasil e vaiem o time durante o jogo, pois são os mesmos que cantam “eeeeeeeeeeeeu sou brasileeeeeeiro, com muito orguuuuulho, com muito amoooooor” quando sai um gol do time nacional.

Ou a torcida brasileira muda de atitude, tira da cabeça a ideia de que o Brasil tem o melhor futebol do mundo, e passa a apóia-lo, pelo menos durante os 90 minutos, ou os estádios brasileiros serão palco de uma grande festa de outro país, talvez da Alemanha, talvez da Espanha, talvez da Argentina, mas não do Brasil.