No alto da colina de onde se avista o pico do Jaraguá vive-se de maneira peculiar. Nos jardins que contornam os pavilhões de amplas janelas há sempre um bom número de pessoas. Muitas andam agitadas. Sacodem as mãos desordenadamente em conversas imaginárias, entremeadas de risinhos nervosos. Outras passam no mais absoluto silêncio. Apesar de estar encravado no bairro paulistano de Pirituba, o Hospital Psiquiátrico Pinel guarda um ar bucólico. Herança do tempo em que o terreno ainda era parte de uma fazenda. Pioneiro no Brasil no uso de pavorosos eletrochoques para domar surtos de loucura, o hospital quer livrar-se de vez de outro legado: o espectro dos ortodoxos modelos de tratamento psiquiátrico lá praticados.

Fundado em outubro de 1929, o Pinel pretende transformar a comemoração dos 70 anos num marco. “Queremos que o aniversário represente uma transformação irreversível”, resume a diretora interina do hospital, a psiquiatra Sílvia Gomes Fenerich. Há cerca de dez anos começou o fim de uma era em que se fazia uso de terapias de choque e o alcoolismo era mal suficiente para meter alguém num manicômio por até 15 anos. Gradualmente, foram sendo introduzidas terapias alternativas, que procuram preparar o paciente para voltar a se integrar ao mundo de fora. “Em vários casos, a longa institucionalização produziu a doença. O paciente perdeu seus vínculos lá fora e não tinha mais autonomia”, explica o psiquiatra Walter Bahia Pereira. Um exemplo de vida roubada, Sandra Maria dos Santos, na casa dos 30 anos, já nasceu institucionalizada. Sua mãe deu à luz na Febem, onde era interna. Sandra foi mantida lá até acharem que seu lugar era mesmo o Pinel. “Ela é a herança viva desse jeito antigo de tratar”, diz Sílvia.

Sandra não é a única. Cerca de 50 pacientes moram no Pinel. Muitos foram abandonados pelas famílias. Um ataque epilético ou mesmo um ligeiro distúrbio de comportamento eram suficientes para que fossem deixados no hospital. Algumas famílias vinham passear em São Paulo e acabavam abandonando ali um parente. “Há famílias que chegam a se mudar para que não possamos encontrá-las, para não correr o risco de receber o paciente de volta”, conta Walter Pereira. Os distúrbios psiquiátricos ainda trazem consigo um forte estigma. Por isso o atendimento também foi, aos poucos, sendo estendido aos parentes, para que possam compreender melhor os sintomas que antes eram vistos apenas como esquisitices. A terapia busca estimular a subjetividade e a convivência. Há bailes, aulas de dança, ikebana e tecelagem.

Exposição – Num delicado trabalho de documentação, o fotógrafo Marcelo Ximenes, 29 anos, colecionou imagens captadas justamente nessas atividades. E completou o casamento entre foto e texto com poesia. Por seis meses, passou dias no Pinel. Às vezes registrava a alegria quase infantil de quem vê o mar pela primeira vez num prosaico passeio a São Vicente. Noutras, muita compenetração ao tentar fazer bonito com a parceira na pista de dança em um baile improvisado. Marcelo foi tocado pela ingenuidade que viu em gestos e chegou a comover-se com a solidão de alguns personagens a ponto de chorar quando chegava em casa. “Muitos tinham uma vida normal antes de parar lá. Um trabalhava como caixa de banco, outro tinha conseguido terminar um curso superior. Me fez pensar que poderia ser qualquer um ali.”

O trabalho que vem sendo desenvolvido no Pinel desde o início da década é em alguma medida reflexo, mesmo que tardio, da reforma psiquiátrica italiana liderada pelo psiquiatra Franco Basaglia, na década de 70. Ele defendia internações curtas e reinserção do paciente em seu núcleo social na medida do possível. “Nosso modelo anterior era voltado para a imposição de normas e regras morais. Agora a relação é humanizada. É preciso compreender as diferenças e aprender a conviver com elas”, diz Walter Pereira. As fotos e a poesia de Marcelo estarão expostas a partir do dia 18 no Conjunto Cultural da Caixa, na Praça da Sé, centro de São Paulo.

Arte e loucura sempre andaram juntas. Em 1889, o pintor holandês Vincent Van Gogh internou-se no asilo Saint-Paul de Mausole, em Saint-Rémy, na França. Pouco tempo antes, uma de suas crises o havia levado a perseguir o amigo e também pintor Gauguin empunhando uma navalha, instrumento usado depois para lancetar uma de suas próprias orelhas. Recém-instalado, Van Gogh escreveu em uma das célebres cartas enviadas a seu irmão Théo: “Se este bom Gauguin e eu no fundo nos compreendemos, e se somos um pouco loucos, que seja; não somos também um pouco artistas o suficiente para contrabalançar as inquietações a este respeito pelo que dizemos com o pincel? Todo mundo talvez um dia sofra de neurose, de histeria, de epilepsia, ou de outra coisa. Mas não há compensação? Em Delacroix, em Berlioz e Wagner? E é real esta loucura artística de nós todos, não nego que sobretudo eu não tenha sido atingido até a medula; mas digo e sustento que nossas compensações e consolos podem, com um pouco de boa vontade, ser considerados amplamente preponderantes.

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Sempre seu, Vincent.”


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