Francisca disse basta. Enfermeira gaúcha de 41 anos, Francisca Ermani se separou do homem com o qual viveu nove anos e que a agredia frequentemente. Isso foi há dois anos. Só agora, ela conta a tragédia que seu casamento se tornou. “Depois das brigas, eu ficava tão inchada que tinha que faltar no trabalho”, relembra. Nas violências cotidianas, seu ex-marido a forçava a manter relações sexuais. Também ameaçava botar fogo no apartamento e mutilá-la, caso ela o denun-ciasse ou pedisse ajuda. “Foi uma tortura”, desabafa Francisca. Seus problemas começaram em 1992. “Eu estava sustentando a casa e ele, desempregado. À medida que minha carreira progredia, sua inveja aumentava. Não fazia nada, me cobrava e me acusava de não parar em casa. Quebrava coisas, depois começou a me bater”, explica a enfermeira. “E eu não pedia ajuda por sentir vergonha de assumir que vivia com um homem daqueles.” Os vizinhos, testemunhas silenciosas das brigas, preferiam não se envolver. “E olha que eu já cheguei a fazer escândalo, gritar na janela por socorro.” Francisca começou a sair do pesadelo ao procurar uma ONG chamada Themis, criada em 1993 por três advogadas de Porto Alegre para prestar assistência jurídica a mulheres. “Se eu soubesse dos meus direitos, tinha me separado antes”, afirma. Ela aguarda as decisões judiciais sobre os processos de separação e pelas agressões sofridas.

Francisca Ermani dá nome e sobrenome a um drama que muitas mulheres de classe média vivem em silêncio Um fenômeno invisível e subdimen-sionado por muito tempo, esse tipo de violência tem sido confirmado por pesquisas. Dois levantamentos, um no Rio de Janeiro, conduzido pelo IBGE, e outro em São Paulo, feito por uma pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica, mostram que mulheres com nível superior, casa própria e carro do ano também são ameaçadas, espancadas, estupradas e torturadas. “As mulheres sofrem em silêncio. A violência na classe média é verdadeira caixa-preta”, afirma a socióloga Barbara Musumeci Soares, subsecretária adjunta de Segurança Pública do Rio de Janeiro, que encomendou ao IBGE uma pesquisa junto a 57.755 moradores casados da Tijuca e do Maracanã, bairros cariocas de classe média. Os resultados mostram o conteúdo sombrio dessa caixa-preta. Apenas no último ano, 32% dos casais experimentaram ao menos um episódio de insulto ou xingamento e 47% dos entrevistados relataram no mínimo um caso de agressão verbal na vida de casados. Entre os que mencionaram algum tipo de violência física ou emocional (11% do total), 64% foram mulheres.

Casos graves, como espancamento, foram citados por 286 mulheres, nove em cada mil abordadas. Outras formas de agressão, como atirar um objeto ou chutar, foram contadas por 4.023 mulheres, 129 em cada mil. Mas as mulheres também agridem. 12,8% das casadas afirmaram ter sido vítimas de algum tipo de violência, mas 8,5% dos homens disseram o mesmo. “O casamento tem um padrão de violência muito maior do que se supõe”, aponta Barbara Musumeci. Isso se deve ao escamoteamento do conflito. Enquanto 3,8% das mulheres vitimadas procuraram uma delegacia de polícia e 6,6% foram a uma delegacia da mulher, 21,6% delas contaram seus problemas a amigos ou parentes. “Acontece em todas as classes, mas nas delegacias de defesa da mulher mais de 90% das denúncias vêm de vítimas de classes baixas. E 50% delas preferem não abrir inquérito, mesmo quando aparecem com um olho roxo”, afirma a delegada-geral Maria Inês Valente, responsável pelas 125 delegacias da mulher do Estado de São Paulo. “A hipocrisia marca a classe média. Em nome da condição material, a violência é suprimida”, afirma Graziela Pavez, assistente social da Casa Eliane de Grammond, em São Paulo, serviço da prefeitura da cidade que atende uma média de cinco novas vítimas de violência doméstica por dia. “Muitas mulheres evitam enfrentar o problema para não mudar seu padrão de vida. Têm receio de perder o carro, o apartamento e o conforto”, diz a assistente social.

Punição financeira – Ela destaca que, na classe média, a violência é mais sofisticada e as mulheres que confrontam o agressor são punidas com a perda da conta no banco, do cheque ou do cartão. “A vítima é intimidada pelo poder do homem, que muitas vezes é provedor da família. Isso leva ao isolamento e à culpa, que fazem a vítima pensar com a cabeça do agressor”, afirma Graziela. “Romper o isolamento é assumir uma co-participação nesse relacionamento e aguentar consequências como a perda do status social e a discriminação.”

Não é um desafio fácil. Casada há 19 anos, E., uma arquiteta de 45 anos, está há 15 anos tentando se separar de um homem que a aterroriza. “Se ele souber que eu dei esta entrevista, ele pode me matar”, teme. E. está em terapia há seis meses e tem um longo caminho a percorrer. “Não acredito mais em relações, acho que homens e mulheres são incompatíveis”, diz ela. “O pior é que eu não sei como sair, acho que o problema sou eu, que aceitei isso. Preferi resolver minha carência afetiva tendo um amante, mas meu marido descobriu e me tirou da conta dele.” Para a socióloga Olívia Rangel, da PUC de São Paulo, o que marca as vítimas de violência doméstica da elite é o medo de perder seu padrão de vida. “Esse tipo de violência é democrático, a diferença é que as vítimas de classe média têm o que perder”, diz Olívia.

Os ricos calam – A socióloga é responsável pela segunda pesquisa que vasculha o cotidiano da elite brasileira. Ela distribuiu nos últimos dois anos 317 questionários para alunos da PUC, cuja mensalidade gira em torno de R$ 500, para investigar seus ambientes familiares. Mais de 50% dos entrevistados declararam renda de R$ 3 mil a R$ 10 mil. Entre a elite da elite, 38,5% dos entrevistados afirmaram conviver com vio-lência física, verbal ou emocional dentro de casa. “A violência não é uma questão de renda, de nível cultural. Não é de modo algum um subproduto da ignorância. Entre os ricos, além de não sair nos jornais nem chegar às delegacias, a violência é menos evidente do que um hematoma ou um braço quebrado”, conclui a socióloga.

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Sua colega carioca, Barbara Musumeci, estudou a fundo o problema da violência doméstica nos Estados Unidos. Durante cinco meses, frequentou um abrigo para mulheres vítimas e, dessa experiência, produziu sua tese de doutorado, que veio a ser adaptada no livro “Mulheres invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança”, lançado em maio deste ano pela editora Civilização Brasileira. “A violência é o último recurso da discriminação contra a mulher, pois as casas são protegidas da lei e da cidadania”, afirma Barbara. “O ditado ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’ simboliza a negligência da sociedade em relação à violência doméstica.” Barbara vê grandes diferenças entre o tratamento dado ao problema nos Estados Unidos e no Brasil. Ela cita o número de abrigos públicos em cada um dos países. Se lá existem mais de 1.500, aqui não passam de 15. “Isso mostra como é distinto o lugar social da vítima.

Militância e vergonha – A americana é legitimada, mostra o rosto, participa de movimentos, é ativista. A brasileira é escondida, não mostra o rosto, não tem espaço para recuperar sua auto-estima.” Ruth Gheler, psicóloga da Universidade de São Paulo, produziu sua dissertação de mestrado baseada em uma pesquisa qualitativa com cerca de 20 mulheres de nível universitário vítimas de violência doméstica. Ela afirma que muitas mulheres independentes economicamente têm dificuldade de ter autonomia pessoal. “São presas a padrões de relacionamento, vindos muitas vezes da própria família, nos quais a mulher depende do homem para ter identidade”, explica a psicóloga. “É preciso muita terapia para ela superar o modelo feminino tradicional e dizer um basta para o espancamento. Isso significa crescer, ser um sujeito de direitos e ter pernas firmes para caminhar a vida sozinha.”


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