O cenário não poderia ser mais exótico – o pátio de uma empresa de socorro mecânico, com um caminhão-guincho e um carro de emergência, ambos pintados em laranja fosforescente, numa cidadezinha do Oeste da Polônia, próxima à fronteira com a Alemanha. O nome do lugar, Zielona Gora. No meio do pátio, estão dois caças soviéticos – um antigo MiG-17F -, dos anos 50, e um supersônico MiG-21FL, que ainda servem em várias Forças Aéreas do mundo. Os aviões serão vendidos a quem pagar US$ 27.000 e US$ 29.500, respectivamente.

Desde que a União Soviética deixou de existir em 1991 e a Rússia mergulhou numa crise sócioeconômica sem solução visível, surgiu um florescente comércio de equipamentos militares do antigo império soviético. Ao contrário do tráfico de armas que alimenta conflitos regionais e terroristas, este comércio é sustentado por colecionadores milionários de todo o mundo, e mesmo por museus de países como os Estados Unidos e o Reino Unido. Recentemente, um empresário britânico desembarcou em Liverpool uma “carga” de 23 aeronaves de combate russas, que incluíam caças MiG-23 e helicópteros de ataque Mi-24 “Hind”, doados a vários museus ingleses. O nome do benfeitor, porém, foi mantido em sigilo.

O comprador dos MiG’s em Zielona Gora é um polonês enorme, cuja camiseta branca mal contém o ventre proeminente. Ele não tem nada de militar, mas possui um documento do Ministério da Defesa polonês que o autoriza a comercializar equipamentos militares fora de uso, para serem “peças de coleção”. É assim que são classificados os dois MiG’s, que estão inteiros, mas não podem mais voar. O MiG-17F esteve em serviço na Força Aérea polonesa até o início dos anos 90, enquanto o MiG-21FL serviu para a formação de pilotos de caça. As condições do negócio são simples – ele oferece as duas aeronaves num pacote por US$ 56.000. O preço inclui o desmonte dos aviões e o transporte até o porto polonês de Gdynia ou até o porto no país do comprador.

Como intermediário entre o comprador e o vendedor surgiu um personagem, os agentes de venda. São eles que estabelecem a ponte entre as duas partes do negócio: os colecionadores ocidentais e os comerciantes no Leste Europeu. Através de uma rede de relacionamentos e do conhecimento dos tortuosos caminhos legais (e ilegais), estes agentes se tornam absolutamente indispensáveis para qualquer comprador do Ocidente.

Um deles é Gerhard Spätz, 37 anos, um austríaco de sorriso simpático, morador de Mödling, cidadezinha próxima à capital Viena. Formado em Biologia, Spätz foi oficialmente um biólogo especializado em felinos do zoológico de Viena. No início dos anos 90, ele se aposentou do zoológico, abrindo um escritório que, em 1996, agenciava para ricos ocidentais voarem em caças e jatos de combate da ex-URSS, em Moscou. Spätz abriu uma filial em Berlim e criou um representante nos Estados Unidos. Sua função é viabilizar a compra de qualquer equipamento militar soviético.

Durante os anos da guerra fria, Spätz era um agente de segurança austríaco. No fim da Segunda Guerra Mundial, a Áustria foi obrigada a assinar um tratado de neutralidade como condição para a saída de seu território das tropas soviéticas e assim se converteu num território livre na Europa dividida entre o Ocidente e o bloco soviético. No jogo da guerra fria, Viena se tornou palco de acordos não-oficiais e trocas de espiões. Neste cenário, um agente como Spätz teve o terreno perfeito para costurar um vasto leque de relacionamentos pes-soais – dos dois lados. Com o fim da URSS, o aparato de segurança foi desmobilizado e Spätz resolveu então usar seus contatos num ramo que logo se tornou muito lucrativo – o comércio das relíquias militares de Moscou.

O escritório de Spätz em Berlim fica na antiga área oriental da cidade. Seu prédio cinzento tem um inegável ar de decadência e nele não há nenhuma placa indicando que ali funciona um escritório. Passando a porta, porém, entramos num ambiente cercado de peças bélicas soviéticas. O sócio berlinense de Spätz é um alemão de mais de 1,90m, Michael, ex-integrante da equipe de halterofilismo da antiga Alemanha Oriental. Há uma variedade de livros russos de temas militares, relógios de pulso e instrumentos de vôo, e até medalhas. Num canto, estão vários uniformes militares completos da União Soviética e da Alemanha Oriental. Mas o que mais chama a atenção é um manequim vestindo um traje de vôo completo, incluindo o capacete de piloto de um caça supersônico MiG-29. Outra raridade: uma touca de vôo de couro ShZ-50, com os óculos e a máscara de oxigênio, usada pelos pilotos do MiG-15, o caça russo que se celebrizou na guerra da Coréia.

Spätz explica o segredo do seu negócio: “Os melhores fornecedores são colecionadores, um círculo fechado, onde você só entra ao ser apresentado por alguém.” Ele diz que muitos foram militares de unidades especiais ou agentes de segurança como ele, nos tempos da guerra fria, por isso são “discretos e desconfiados de pessoas de fora”. A importância destes fornecedores de confiança é ainda maior, segundo ele, quando se sabe que em lugares como a Polônia e a Ucrânia “existem dezenas de pequenas confecções caseiras produzindo cópias de uniformes soviéticos para vender no Ocidente como originais”.

Camaradas – Na cidade de Eberswalde, ao norte de Berlim, Spätz encontra um destes “fornecedores especiais”. O encontro é no estacionamento de um museu, onde o sujeito estaciona o seu Mercedes-Benz ao lado da van de Spätz. Seu nome é Günther, um ex-agente da temida Stasi (polícia secreta da Alemanha Oriental), especializado no uso de armas não-convencionais. Traz várias fotos, onde se pode ver seu equipamento. São rifles automáticos, lançadores portáteis de foguetes, minas e todo tipo de arma pessoal de combate russa. Além disso, Günther possui mais de 200 uniformes militares soviéticos completos, que vão de fardas “de verão”, usadas no Afeganistão, até um uniforme de gala de marechal da União Soviética. Ele ainda é capaz de encontrar uniformes militares da Alemanha nazista. Uma camiseta da época da guerra, usada sob a farda, pode alcançar mais de US$ 1.000.

Spätz e Günther se conheceram nas ruas de Viena, nos tempos da guerra fria, quando ambos estavam em “serviço ativo” – em lados opostos. Depois da unificação alemã, os dois se reencontraram ao serem apresentados um ao outro pelo diretor de um museu de aviação militar. Spätz comenta que, nesta ocasião, “Günther começou muito calado, falando pouco; eu contei então algumas das minhas histórias e ele, ao per-ceber que eu era mesmo um antigo ‘camarada’ de ser-viço, ficou mais tranquilo e passou a conversar com desenvoltura”. Em seu pecu-liar “código de etiqueta”, “cama-rada” é qualquer ex-agen-te de segurança – de ambos os lados.

Fora de uso – Os uniformes são as peças menos bizarras da lista de itens à venda. Um museu particular alemão adquiriu da Ucrânia um avião de transporte militar Antonov An-22, o mais poderoso avião a hélice já construído, com capacidade para 100 toneladas de carga. E uma empresa alemã de Rothemburg está oferecendo o helicóptero Mil Mi-14, um modelo russo usado para guerra anti-submarino e resgates em alto-mar. A empresa é a única que tem este modelo, pois ficou com seis exemplares que fa-ziam parte da Aviação Naval da Alemanha Oriental – e são os únicos disponíveis no mundo. A raridade do Mi-14 está avaliada em US$ 33 mil.

Hoje os maiores fornecedores dessas peças soviéticas são os países do Leste Europeu e as repúblicas da ex-URSS. A própria Rússia, apesar da aguda crise econômica, tem se mostrado relutante neste comércio. Já os países do Leste Europeu buscam uma integração rápida com o Ocidente. No caso da Polônia, uma integração que inclui até a participação na Otan, e assim a vontade é se desfazer o quanto antes do antigo equipamento militar de origem russa. Para ex-repúblicas soviéticas como a Ucrânia, a questão é converter em dinheiro um arsenal inútil. No tempo de aliadas de Moscou, a Polônia e a antiga Alemanha Oriental tinham 750 e 360 aeronaves militares, respectivamente, enquanto a Ucrânia se separou da URSS com mais de 550 jatos de combate.

Um ponto crucial do negócio é que os equipamentos sejam itens sem condições de uso militar. No caso de um jato de combate ainda voando, isto é feito com a retirada dos sistemas para o uso das armas, como computadores de fogo. Isso é fundamental para que os agentes de venda atuem de modo legal. Caso contrário, estes comerciantes seriam transformados em traficantes de armas – uma atividade punida com extrema severidade em países como Alemanha e Áustria. Porém, é fácil transformar um avião “desmilitarizado” em arma de combate mortal. E há pilotos que conhecem bem essas máquinas. Nas recentes escaramuças entre Etiópia e Eritréia, eles têm voado pelos dois lados, operando caças Sukhoi Su-27 e MiG-29.

Não é raro também que se vejam ofertas de itens prontos para uso. Voltando à Polônia, num vilarejo próximo à Zielona Gora, num posto de gasolina, o proprietário se identificava também como vendedor de peças militares de coleção, e mostrava um motor-foguete de míssel Scud – o mesmo usado por Saddam Hussein na guerra do Golfo. Estava novo de fábrica, ainda com os lacres de vedação e proteções de manuseio e podia ser comprado por apenas US$ 2.200.

A oferta do momento é um bombardeiro supersônico russo Tupolev Tu-160 “Blackjack”. Capaz de alcançar distâncias de 12.300km, 19 desses monstros ficaram com a Ucrânia quando houve o colapso da União Soviética. Oficialmente, o governo ucraniano se comprometeu a destruir estas aeronaves, como parte dos acordos de anulação de seu arsenal nuclear. No entanto, há um mês, qualquer um podia ter um Tu-160 pronto para voar por apenas US$ 9 milhões.