Detalhes. As vitórias do queniano Joseph Chebet e da mexicana Adriana Fernandez na 30ª maratona de Nova York, no domingo 7, são meros detalhes. Ao menos para a imensa maioria dos 29.995 participantes de 114 países que deram seu suor e suas lágrimas para completar os 42 quilômetros da mais espetacular prova do planeta, acompanhada nas ruas da cidade por dois milhões de nova-iorquinos e assistida pela tevê por sete milhões de pessoas. Os gritos, urros, sorrisos e convulsões dos corredores na chegada da maratona, dentro de um Central Park acobreado pelo outono, a uma temperatura de 10ºC – que despencava com o vento cortante – dimensionam o esforço de cada um. É impossível não se emocionar: para eles, homens e mulheres, jovens e velhos de todas as raças, vencer é conseguir completar a prova, superar os próprios limites. Porque eles são, afinal, gente como a gente.

Gente como a brasileira Márcia Guijarro, 42 anos, ex-fumante, completamente sedentária até dois anos atrás, que completou a maratona em seis horas e dezesseis minutos. “Sou meio lerdinha, mas eu chego”, diz ela, um dos 100 funcionários do grupo Pão de Açucar que integraram o total de 371 brasileiros que participaram. Antes de se integrar ao programa de treinamento da empresa, onde trabalha como assistente de recursos humanos, Márcia pesava 121 quilos, sofria de diabetes e, segundo a própria, “tinha tudo alto, menos a conta bancária”. Alertada pelo médico, ela começou a andar uma hora por dia. Emagreceu 42 quilos e participou da São Silvestre em 1998. Começou a sonhar com a maratona. “Eu odiava correr, não sabia respirar. Depois de terminar a prova, senti uma emoção única, como se eu fosse uma Cinderela”, diz Márcia. Sua técnica de maratonista é peculiar. Para controlar a respiração, ela canta e fala o tempo todo. “Durante a prova, no Brooklyn, chamei a atenção por isso e até fiz amizade com outros corredores.

Mandioca – Também é particular a técnica de seu colega Francisco Silva, 35 anos, que trabalha na reposição de estoque de uma loja da rede de supermercados. Nascido em Barro Duro, interior do Maranhão, Franscico não abriu mão, nem na mais rica cidade do mais rico país do mundo, do alimento que consistia seu café da manhã durante toda a juventude: mandioca. Levou uns pedaços cozidos na mala e, no dia da maratona, comeu-os com sal e manteiga. “A nutricionista diz que é um alimento pesado, mas eu estou acostumado e me dou bem com a macaxeira”, diz Chiquinho, como é conhecido. Esta foi sua terceira maratona nas ruas da “grande maçã”. “Na primeira vez, trouxe mandioca escondida e deu certo”, diz ele, que mora num cômodo no Jardim Cerejeira, periferia de São Paulo, e leva duas horas para chegar de ônibus ao emprego. Quando vai correndo, economiza meia hora. Chiquinho simboliza na maratona de Nova York o herói brasileiro. “Os mais humildes são os mais determinados, pois vivem superando dificuldades”, afirma Wanderlei de Oliveira, treinador responsável pela transformação de funcionários em atletas.

Deve ser por isso que, depois de viver 18 anos na Febem e sobreviver outros 16 nas ruas de São Paulo, Ana Luíza dos Anjos Garcez correu a maratona em três horas e meia. “Tem muitas Anas na Febem que também podem fazer isso. Só precisam de atenção”, diz. Ela foi a Nova York patrocinada pela Secretaria Municipal de Esportes de São Paulo. Ficou hospedada na casa de uma família americana e deslumbrou-se. “Sentava na mesa com eles, igual gente. Vou sentir saudades. Na rua eu era ‘ben jonhson’, muito louca mesmo.” Há três anos, sob efeito de cola de sapateiro, ela assistiu nas televisões expostas numa vitrine ao filme Carruagens de fogo e, diante daquelas imagens, resolveu salvar sua vida. “Chorei com a música e achei muito bonito aqueles homens correndo. Como eu era muito rápida, pois vivia fugindo da polícia, pensei que podia fazer igual.” Ana chegou à Febem recém-nascida, dentro de uma caixa de sapatos abandonada à porta.

É para ver heróis como Ana, Chiquinho e Márcia que a população de Nova York pára quando um estrondoso tiro de canhão dá início à maratona. Desde a largada, em Staten Island, passando pelo Brooklyn, Queens, Bronx e Manhattan – os outros distritos da cidade -, a prova é acompanhada por famílias inteiras, pessoas sozinhas nas janelas dos prédios, negros, brancos, latinos, judeus ortodoxos. Eles incentivam os corredores e promovem, mais do que isso, uma verdadeira celebração. Era como se o mundo estivesse comemorando sua existência. “Este é o dia da amizade, como é o Carnaval brasileiro. Fui para Copacabana e sei como é”, compara Simon Kwakarnaat, 66 anos, um dos 988 holandeses inscritos, em sua sétima maratona.

“Come on” – Em uma esquina, caixas de som emitem música de Frank Sinatra, em outra, exibem-se bandas de rock de qualidade duvidosa e, mais para frente, um coral infantil de gospel mostra que é preciso continuar: gritam “go, go” e “come on”, ainda mais forte na passagem dos 300 maratonistas de categorias especiais, como cadeiras de rodas. “Eu vim de uma cidade pequena da Carolina do Sul para provar para mim mesmo que sou capaz de qualquer coisa”, diz o americano Tom Martin, 33 anos, que perdeu parte da perna esquerda aos oito anos, em um acidente numa fazenda. Cada rosto na multidão de corredores traz uma história. As mexicanas Alma Rosa e Maria Corral passaram quatro meses acordando às seis da manhã para treinar. “Hoje vamos brindar nossa saúde física e emocional com o resto do mundo”, diz Alma. A dentista japonesa Noriko Nishigaki, 47 anos, completa: “Todo mundo vem aqui porque gosta de viver.” É boa também a definição do lendário campeão olímpico tcheco Emil Zatopek: “Se você quer correr, então corra uma milha. Se você quer experimentar uma outra vida, corra uma maratona.” Quer tentar?