Antes de aterrissar no aeroporto internacional de Beirute, os aviões sobrevoam a capital libanesa para os turistas terem o primeiro contato com a paisagem do país. O mar Mediterrâneo e uma extensa faixa urbana espremida pelos montes do Líbano são a primeira visão dos passageiros. Lembra um pouco o Rio de Janeiro, do mesmo modo que a imagem de violência, muito associada ao nome do país. Guerras, atentados, bombardeios, tudo isso virou sinônimo de Líbano nas últimas décadas.

Essa cena de terror, no entanto, se desfaz logo depois do desembarque do avião. Moderno e reformado, o aeroporto quase não guarda resquícios da guerra de 1975-1990, quando foi praticamente destruído. Jovens estudantes, em meio a cartazes de hotéis e locadoras de carro, aguardam os turistas com bandejas recheadas de doces típicos. É o Líbano moderno, que tenta esquecer o período de guerra para reconstruir o país. E, sem dúvida, muito já foi alcançado. O centro de Beirute, devastado pelo conflito, está, em grande parte, reerguido, com prédios novos ocupando o lugar das ruínas dos tempos da guerra. Lojas internacionais já se instalaram no país, de olho no dinheiro dos sempre esbanjadores libaneses que circulam pelas ruas a bordo de seus Mercedes e Land Rovers. Os celulares, assim como no Brasil, são uma febre e já atingiram todas as camadas da população. Também pudera, devido à guerra, quase não foram instalados orelhões no país. O incipiente renascimento do turismo já foi suficiente até para levar a Beirute o londrino, mas extremamente americanizado, restaurante Hard Rock Café, que tem duas lojas operando na cidade. Mesmo não sendo o que um turista buscaria no Líbano, é um sinal do investimento estrangeiro no país, do mesmo modo que as redes internacionais de hotéis, que saíram na época da guerra e agora estão retornando.

A cultura árabe também está ganhando força, e os festivais de dança em Baalbeck, no vale do Bekaa, e Tiro, no Sul, estiveram lotados todos os dias durante o último verão. Reunindo libaneses e muitos turistas estrangeiros, os acontecimentos visam recolocar o Líbano no centro cultural do mundo árabe. Entre os jovens, a moda, além de ouvir tecno como no resto de mundo, é retomar hábitos tradicionais, como dançar dabke e fumar narguilê – objeto em que o tabaco é filtrado pela água e, misturado a hortelã, maçã ou morango, deixa um aroma de perfume nos locais onde é fumado. Alguns pontos turísticos, como o Museu Nacional, estão sendo reformados. Outros, como a bela Nossa Senhora Harissa e a gruta de Jthail, já estão completados. “Não pensava que a terra dos meus avós fosse tão cheia de riquezas. Pelo que lia nos jornais e assistia na televisão, imaginava um clima de guerra, o que não é verdade. Os jovens daqui vivem como em qualquer outro lugar, estudam, vão para a praia, namoram e dançam”, comentou o equatoriano e neto de libaneses Gabriel Bittar, após participar do acampamento promovido pelo governo libanês, que reuniu jovens descendentes de todo o mundo.

Mas nem tudo é festa no Líbano. Ao contrário, em meio a esse renascimento do país, ainda existem muitas sequelas da guerra, como o medo dos bombardeios, a constante presença de soldados sírios – com consentimento do governo do Líbano, mas com forte oposição dentro e fora do país – e a ocupação israelense no sul do país, em constante guerra contra os guerrilheiros do Hizbolah. Mohamad, filho de um xeque muçulmano xiita, tem apenas 17 anos e, somado ao sonho de estudar engenharia, tem um sentimento que, é semelhante ao de muitos libaneses: um ódio profundo a Israel. Não se conforma que eles venham até o seu país e soltem uma bomba numa ponte a poucos quilômetros de sua casa em Sidon. “O barulho é incrível, mesmo acostumado, sempre dá medo.” Em Qana, cidade que em 1996 foi alvo de um bombardeio israelense, deixando 106 mortos, na operação Vinhas da Ira, visitantes libaneses, sejam cristãos, muçulmanos sunitas ou xiitas, costumam chorar. Alguns de tristeza, outros de raiva mesmo. A maior parte das vítimas era de crianças e mu-lheres que estavam refugiadas num abrigo da ONU. No local há uma placa descrevendo o acontecimento como “o novo holocausto”.

Até mesmo os governantes estão unidos quando o assunto é Israel. O presidente libanês, o cristão maronita Emile Lahoud, afirma que Israel bombardeia o Líbano para afugentar os turistas que vêm para o país no verão, dando como exemplo o último bombardeio, que causou uma série de cancelamentos de reservas em vôos e hotéis. O governo de Israel, na época, afirmou que o ataque era uma resposta aos ataques do Hizbolah (Partido de Deus, organização político-militar islâmica). Na mesma linha do presidente, ao ser questionado por ISTOÉ sobre a possibilidade de paz com Israel no futuro, o primeiro-ministro libanês, o muçulmano sunita Salim Al-Hoss, respondeu que “tudo em relação aos israelenses é prematuro, ainda que o seu primeiro-ministro, Ehud Barak, cumpra sua promessa de retirar as tropas do Sul do país”.

A presença síria, por outro lado, é muito marcante. Logo na entrada do país, antes de comer um dos doces distribuídos pelos jovens e depois de passar pela polícia libanesa, é necessário mostrar o passaporte para um soldado. Um desatento poderia achar isso algo rotineiro. Talvez, se o militar fosse libanês. Mas é, na verdade, do Exército sírio. Isso mesmo, para entrar no Líbano é preciso passar por um soldado de outro país. Seria como, se ao entrar no Brasil, tivéssemos de mostrar o nosso passaporte a um soldado argentino. E a coisa não pára por aí. Ao trafegar pelas estradas e ruas libanesas, é comum os carros terem de passar por postos do Exército sírio. Ao todo, são 35 mil soldados sírios em território libanês. O extremo é a inexistência de uma embaixada síria no país, o que, de uma certa ótica, pode ser considerado como um não reconhecimento da soberania libanesa. O premiê Al-Hoss, no entanto, afirma que os sírios estão no país devido a um acordo entre os governos. É, segundo ele, uma forma de defesa contra a presença israelense no sul do Líbano. Entre a população, no entanto, há insatisfação. Um agente de turismo que prefere não se identificar, afirmou que “muitos libaneses não concordam com a ocupação síria, mas têm medo de se expressar”. Entre esses, estão figuras importantes, como o ex-presidente Amir Geymael e o ex-chefe das Forças Armadas e ex-presidente Michel Aoun.

O Líbano, assim como outros países da região, tem como característica principal na sua sociedade a presença de inúmeras religiões. É um saco de gatos impressionante. Podem ser cristãos maronitas, melquitas, grego-ortodoxos, católicos romanos, armênio-ortodoxos, muçulmanos sunitas, xiitas, drusos e, até um tempo atrás, judeus. Só que, ao contrário dos países vizinhos, onde os muçulmanos são maioria, a presença cristã no Líbano sempre foi muito forte. São cerca de 40% da população. Depois da independência, em 1943, seu principal ramo, o dos maronitas, rapidamente atingiu os principais postos do poder. Foi nessa época que o Líbano começou a crescer economicamente. Seus bancos atraíam dólares do petróleo. A elite do país, tanto cristã quanto muçulmana, era muito cosmopolita, falava, além do árabe, o inglês e o francês. Beirute era sede de muitas empresas européias e americanas no mundo árabe. No seio dessa sociedade, no entanto, havia uma contradição. Os filhos de cristãos, por exemplo, eram educados em escolas francesas e americanas, aprendendo a história ocidental. Alguns deles, mais radicais, se consideravam mais como descendentes dos fenícios do que árabes propriamente. No outro extremo estavam algumas alas muçulmanas, também radicais, que matriculavam suas crianças em colégios islâmicos, que tinham como principal livro escolar o Alcorão.

Claro, estava sendo gerado um confronto, que acabaria sendo inevitável. O ensaio foi em 1958, quando uma rebelião islâmica estourou no país, e só não se transformou em guerra civil porque os Estados Unidos intervieram. Dezessete anos depois, quando a presença palestina começou a crescer no país, irritando setores da direita cristã, não teve jeito. Começava a guerra civil, envolvendo, no início, alas cristãs mais radicais contra uma coalizão muçulmana aliada a grupos palestinos. Hadda, que era adolescente durante a guerra, descreve o período “como muito duro, mas continuávamos tentando levar uma vida normal, indo à aula, tendo amigos. Mas, quando aconteciam os bombardeios, tínhamos de ir para o subsolo do prédio, se alimentando de comida armazenada. Algumas vezes, alguém da família não conseguia voltar para casa a tempo, e ficávamos até duas semanas sem nos ver. Outra saída era ir para casas de parentes em regiões mais tranquilas, retornando quando os conflitos acalmassem um pouco”.

Hoje ainda não dá para dizer que o Líbano tenha voltado a ser a Suíça do Oriente Médio. No entanto, já não é mais sinônimo de guerra, como Kosovo. Quem sabe possa ser comparado ao Rio de Janeiro – violento, mas também belo e hospitaleiro.