O ministro da Fazenda minimiza os efeitos da crise financeira internacional e diz que todos querem investir no Brasil

De fala mansa, mas verve afiada, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, não tem papas na língua para classificar o governo FHC: um "desastre" nas políticas fiscal, de juros e no comércio exterior. Mas ele reconhece a importância da estabilização trazida pelo Plano Real e pela Lei de Responsabilidade Fiscal. O ministro acredita que a crise financeira internacional provocada pela bolha imobiliária americana é séria, mas não afetará o Brasil, como ocorreu nas crises anteriores. Tanto que os avaliadores de riscos, como o Moods, "um dos mais conservadores", diz que o Brasil já está próximo de conseguir o investment grade. Para Mantega, mesmo que o Brasil seja atingido, nós sofreremos menos, porque hoje dependemos mais do mercado interno – que está crescendo a taxas "chinesas" – do que do externo. A seguir, trechos da entrevista exclusiva concedida a ISTOÉ na terça-feira 11.

ISTOÉ – O sr. disse que o Brasil não corria riscos com a crise financeira internacional. Mas as turbulências nos mercados mundiais continuam.
Guido Mantega

Estamos diante de uma turbulência internacional relativamente séria, talvez parecida com a crise da Rússia de 1998, que veio depois da crise asiática. Os bancos centrais dos Estados Unidos e da Europa já colocaram mais de US$ 400 bilhões no mercado financeiro. Nos últimos dias voltaram as turbulências porque os analistas começaram a ver sinais de recessão nos EUA. O ponto de interrogação é saber se isso vai afetar o mercado mundial, especialmente as economias da China e da Índia.

ISTOÉ – Por quê?
Guido Mantega

Porque juntas China e Índia hoje são mais importantes para o comércio mundial do que Estados Unidos e Europa. O PIB americano representa 20% do PIB mundial, o da China 16% e o da Índia 6%. Além disso, esses dois emergentes crescem a taxas quatro vezes maiores do que as americanas. A locomotiva do mundo não é mais americana, e sim chinesa. O grande temor não vem dos Estados Unidos. Se eles tiverem uma retração só um pouco maior do que a atual, mas os emergentes continuarem vigorosos, não haverá grandes conseqüências para a economia internacional.

ISTOÉ – Mas então quais são os riscos reais para a economia brasileira?
Guido Mantega

O risco maior é esse, o de a recessão americana afetar as economias da China e da Índia, provocando uma retração do comércio internacional. E qual é a exata situação do Brasil nesse contexto? Nós estamos demonstrando na prática que o Brasil ganhou uma grande resistência a turbulências internacionais. Se esse episódio tivesse acontecido apenas cinco anos atrás, no final do governo Fernando Henrique, ou mesmo no início do governo Lula, isso iria significar fuga de capitais, desvalorização aguda do real, taxa de juros na estratosfera e a atividade econômica seria paralisada, com forte desemprego. Mas neste momento, a crise americana só está atingindo mercados derivativos, de renda variável e mercados futuros.

ISTOÉ – Mercados especulativos?
Guido Mantega

Eu não os chamaria disso, mas de segmentos de renda variável. Eles tinham se valorizado muito antes dessa turbulência. Agora estão queimando um pouco da gordura que acumularam. Nosso setor financeiro tem poucas conexões com os segmentos internacionais contaminados. Além disso, nossa economia real está muito sólida. Mesmo na hipótese de que haja uma retração do comércio mundial, o Brasil será pouco atingido. Tanto que no meio dessas turbulências tivemos uma promoção entre os avaliadores de riscos. O Moods, um dos avaliadores mais conservadores, está até dizendo que o Brasil está muito próximo de conseguir o investment grade, o grau de economia segura para investimentos.

ISTOÉ – Caso a crise provoque a retração do comércio mundial, quais empregos serão atingidos no Brasil?
Guido Mantega

A grande vantagem do Brasil é que hoje nosso crescimento depende mais do mercado interno do que do externo. E o interno está crescendo a taxas muito expressivas. O consumo, especialmente nas classes C e D, está crescendo 10% ao ano, a taxa chinesa. Então, se tivermos retração das exportações, teremos em compensação o impulso do mercado doméstico. Se diminuírem as exportações de sapatos para a Europa, ou se cair o consumo de aço na China, em compensação você está vendendo muito mais aço para a indústria automobilística e a construção civil.
 

ISTOÉ – Parecem medidas inspiradas naquelas do presidente Roosevelt nos anos 30 de estimular o consumo popular para tirar os EUA da depressão.
Guido Mantega

Só que a nossa política econômica é mais bem-sucedida do que a de Roosevelt. Ele ficou até 1939 com essa política, o New Deal, e a economia americana só teve um boom quando começou a Segunda Guerra Mundial. Até então, ele havia minimizado a crise. Já o governo Lula, em pouco tempo, conseguiu um ciclo de crescimento sustentável.
 

ISTOÉ – Não estamos colhendo as boas sementes da estabilidade econômica plantad as lá atrás pela dupla Fernando Henrique e Pedro Malan?
Guido Mantega

Nossa política econômica não tem nada a ver com a do Malan. Os fundamentos produtivos do Brasil foram plantados por Getúlio Vargas e por Juscelino, muito lá atrás. O governo anterior manteve o Plano Real, que foi um avanço no combate à inflação, e deu uma contribuição com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas lembro que, nos seus primeiros quatro anos, o governo Fernando Henrique foi um desastre fiscal. A política de juros foi outro desastre. Também foi um governo titubeante em relação à política de comércio exterior e não foi ousado o suficiente para fazer um superávit fiscal à altura. A primeira coisa que o governo Lula fez foi aumentar o superávit. Fomos mais duros e mais ousados do que o governo anterior.
 

ISTOÉ – Mas agora não estamos vivendo uma bolha inflacionária causado pelo aumento do consumo?
Guido Mantega

É um exagero falar em bolha. Estamos vivendo um momento em que alguns preços de alimentos tivetiveram uma alta relevante. É normal a oscilação de preços de alimentos. Estamos na entressafra, combinado com um período de escassez internacional de trigo, carne, leite e derivados. Eles subiram. Em compensação, temos pela frente a maior safra agrícola da história. Serão 130 milhões de toneladas de grãos. Isso vai atenuar o efeito dessa inflação de alimentos. Mas não tem inflação geral da economia brasileira.

ISTOÉ – Tecnicamente, qual a diferença? O consumidor está efetivamente pagando mais caro pelos alimentos.
Guido Mantega

O IPCA está em torno de 4% projetados para 2007, para uma previsão de crescimento de 5%. Significa que o brasileiro não está perdendo renda. Em 2006, a inflação foi de 3,14%, mas foi um ano de taxa excepcionalmente baixa. A meta de inflação era 4,5% e foi 3,14%, para um crescimento de 3,7%. Isso mostra uma economia saudável.

ISTOÉ – Qual o risco do Banco Central voltar a elevar a taxa de juros?
Guido Mantega

Você não consegue combater a inflação de carne, de leite ou de trigo subindo os juros porque eles têm preços estabelecidos pelo mercado internacional, são commodities que subiram lá fora e aqui também. Juro não é remédio para esse mal que nos acomete. O BC não olha apenas para um ou dois preços, mas para o conjunto de números da economia, que estão muito comportados. Estamos com uma taxa de crescimento do consumo muito elevada, 10% a mais do que no ano passado, mas a oferta de produtos também está crescendo, o que impede a chamada inflação de demanda. Além disso, o Brasil hoje é uma economia globalizada. Se o produtor nacional resolve elevar seus preços, nós vamos importar o produto e ele vai ter que competir.
 

ISTOÉ – O sr. já disse várias vezes que era hora de baixar os juros e ainda assim o Banco Central manteve sua política ortodoxa. O que garante que agora será diferente?
Guido Mantega

Para o Banco Central precisar elevar os juros, é preciso que a inflação como um todo suba no Brasil. Ela subiu um pouco, mas ainda está dentro da meta de 4,5%. Subir o preço do queijo não é razão suficiente para mudar a política monetária. No momento, não vejo no horizonte riscos de inflação. Porque estamos abaixo do centro da meta de inflação, que é de 4,5%. Se nós tivéssemos uma meta muito ambiciosa de inflação, de 3% como centro, o BC já deveria estar subindo a taxa de juros para perseguir essa meta. Mas ainda não há razão para preocupação.

ISTOÉ – Depois de mais de uma década de crescimento pífio, tudo indica que o Brasil deverá crescer em 2007 a uma taxa próxima a 5%. É sinal de que já encontramos o bom caminho?
Guido Mantega

Digamos que já estamos na rota do crescimento sustentável e que devemos repetir esse desempenho nos próximos anos. No passado, a gente crescia a taxas mais elevadas, mas em compensação o déficit público ou a dívida externa aumentavam. Hoje, estamos crescendo com a inflação sob controle e diminuindo tanto a dívida externa quanto a pública. Criamos as condições para que o Brasil possa crescer nos próximos dez anos a taxas de 5% ao ano, com inflação baixa. E o melhor: o Brasil vai crescer 5% com ou sem turbulência internacional. Por isso todo mundo quer investir no Brasil.

ISTOÉ – Se estamos tão bem assim, por que prorrogar a CPMF?
Guido Mantega

Porque ela é necessária para garantir o equilíbrio fiscal que conseguimos. São R$ 36 bilhões ao ano, dos quais 42% vão para a Saúde, 22% para a Previdência e 20% para o Bolsa Família. Se perdermos a CPMF, teremos que desviar recursos de outras atividades para a saúde e para o combate à pobreza.

ISTOÉ – Não lhe parece um escárnio que o governo queira prorrogar o CPMF justamente quando a saúde pública volta a enfrentar uma crise?
Guido Mantega

Para a oposição, está muito confortável falar mal dos tributos. Estamos enviando R$ 44 bilhões para a saúde, mais do que toda a CPMF. O mais curioso é que foi a oposição quem criou a CPMF. Ela está sendo contraditória. Diz que o Brasil precisa de mais recursos para a saúde e ao mesmo tempo quer matar o filho que criou. Deveria dizer: vamos aumentar o valor da CPMF para melhorar a saúde.

ISTOÉ – Mas o sr. e todo o PT criticaram a CPMF quando foi criada no governo FHC… .
Guido Mantega

É verdade, a vida é assim. Hoje, a CPMF faz parte da arrecadação do governo e é importante que seja mantida. O que não quer dizer que eu não seja favorável à desoneração tributária. Só que você não pode eliminar todos os impostos

ISTOÉ – O governador José Serra disse que o governo Lula não tem plano, que arrecada por arrecadar.
Guido Mantega

Ele deve estar confundindo este governo com o governo Fernando Henrique. A população está melhorando de vida e o Brasil nunca contou com tanto prestígio internacional quanto agora. O problema do Serra é mais de dor-de-cotovelo do que de uma boa análise econômica.

ISTOÉ – Mas a arrecadação bate recordes a cada mês. .
Guido Mantega

No Brasil, há uma confusão entre arrecadação e carga tributária. Nós já estamos reduzindo os impostos para os setores que geram mais crescimento e empregos, como a construção civil. Mas a arrecadação está subindo porque o País está crescendo, os empresários estão tendo mais lucros e pagando mais. E boa parte desse aumento da arrecadação é combate à sonegação

ISTOÉ – O governo Lula começou ultraortodoxo na economia e agora o sr. vem falando de implementar o social-desenvolvimentismo. Do que se trata?
Guido Mantega

O governo Lula tinha que fazer um ajuste fiscal no início, mas nunca foi ultra-ortodoxo. Desde o início fizemos programas sociais. Agora estamos combinando um crescimento mais vigoroso com diminuição da desigualdade social. No passado, o desenvolvimentismo não cuidava da área social, a economia crescia mais, só que com desequilíbrios. Agora estamos num novo modelo. O bolo cresce mais, tem mais fermento, e as fatias são divididas ao mesmo tempo com toda a população, e não só com a elite, como acontecia no passado.