Essa mulher sofreu o diabo e era tão colorida!" A frase é da atriz Rosamaria Murtinho, que interpretará a pintora mexicana Frida Kahlo (1907-1954) na peça homônima que estréia em outubro no Rio de Janeiro. De fato, a atriz resume a polaridade que sempre marcou a artista plástica: uma vida de desgraças reiterantes em oposição a uma arte extremamente viva, gritante – embora isso não signifique alegria. Ao contrário, Frida foi trágica em muitas de suas telas, mas sem jamais abandonar a força das cores e da iluminação. Sua biografia é tão intensa que, por vezes, não se sabe quem é mais forte: ela ou a obra. No centenário de seu nascimento, em 6 de julho, muitas são as homenagens, exposições e revisões acerca da criadora e suas criaturas. Em uma delas, pelo menos, quem fala é a própria: o recém-lançado livro Cartas apaixonadas de Frida Kahlo (José Olympio, 160 págs., R$ 30).
E como fala! Frida escreve cartas enormes, entre as décadas de 20 e 50, a amigos, familiares, ex-namorados e, especialmente, ao grande amor de sua vida, o muralista Diego Rivera (1886-1957), com quem se casou e de quem se divorciou – mas nunca se separou. Rabisca folhas e mais folhas sem reservas, como se estivesse pensando alto, sem preocuparse com a exposição de suas entranhas. Fala do martírio físico, da poliomielite aos seis anos de idade que fez com que uma perna ficasse mais curta que a outra, e do acidente, aos 18, que acarretou mais de 30 cirurgias e a terrível sentença: nunca poder gerar filhos. E fala, também, da tortura afetiva: o amor terminal que sentia por Rivera, ao lado de quem foi feliz e infeliz na mesma proporção.
A arte era a porta de saída. Frida viajou o mundo e recebeu elogios de Miró, Picasso e Kandinsky, entre outros. Mas recusava o selo surrealista. "Não pinto o surreal, pinto a minha realidade", dizia. Em Cartas apaixonadas a artista se revela uma comunista com muitos sonhos burgueses, como casar e ter filhos. Um de seus amantes foi Leon Trotsky, que, fugindo do regime stalinista, acabou se hospedando na casa dela. As doenças, as traições do marido, os abortos espontâneos que sofrera, a morte do pai, tudo isso é moldura para a última cena, sua morte. Ela foi encontrada sem vida na cama e o atestado de óbito registra que a causa foi embolia pulmonar. Uma última frase em seu diário, entretanto, leva a questionar se ela não cometera o suicídio: "Espero alegre a saída e espero nunca voltar." Frida, verdadeiramente, nunca saiu da vida. Virou mito e suas obras são, hoje, valorizadas no mundo todo. Um de seus quadros, Raízes, de 1943, alcançou a quantia de US$ 5,6 milhões em leilão na Sotheby’s de Nova York. A imagem da mulher cujas sobrancelhas se encontravam formando um desenho curioso sem ser bonito é, agora, símbolo de um poderoso ícone do século XX.