Quem não conhece uma história de alguém que já tenha passado por apuros com o plano de saúde? Do reajuste de preços das mensalidades ao desligamento de hospitais conveniados, as queixas dos consumidores se somam. Sem contar com um sistema público de saúde de qualidade, o brasileiro está à mercê das empresas privadas. São cerca de 45 milhões de usuários que comprometem parte de seus rendimentos mensais para receber um atendimento médico de nível superior ao oferecido gratuitamente pelo governo. Ao menos em tese. De sete meses para cá – quando a regulamentação do setor ditada pelo governo entrou em vigor –, o que se verifica é que os consumidores continuam gastando saliva e paciência para ter o tratamento que se espera de um serviço pago. Em uma pesquisa realizada pela Istoé online com 222 leitores, 65% deles afirmaram estar insatisfeitos com seus planos de saúde. Até o ministro da Saúde, José Serra, já amargou surpresas desagradáveis por conta dos planos. Há dois anos, ele ficou revoltado quando soube que a mensalidade do convênio de sua mãe, Serafina, havia aumentado de R$ 200 para R$ 800 só porque ela mudou de faixa etária. E os usuários não estão isolados nessa briga. Ganharam o apoio dos médicos, que lançaram no mês passado uma campanha nacional para denunciar abusos impostos veladamente pelos convênios. Esses profissionais estão sendo pressionados a aumentar o número de consultas por dia, a diminuir os pedidos de exames e correm o risco de serem descredenciados se desobedecerem às recomendações. “Estamos à beira de um abismo com os olhos fechados”, desabafa o médico Florisval Meinão, diretor de Defesa Profissional da Associação Paulista de Medicina (APM).

Com o slogan “Chega de desrespeito”, a APM, a Associação Médica Brasileira (AMB) e outras entidades iniciaram a contenda com os convênios. A campanha diz o seguinte: “Tem plano de saúde que enfia a faca em você. E tira o sangue dos médicos.” O movimento quer chamar a atenção para as pressões a que os profissionais são submetidos e a consequente queda na qualidade do atendimento. Uma das principais queixas é a baixo valor pago pelas consultas. Os profissionais afirmam que desde 1996 os planos receberam 96% de aumento no reajuste das mensalidades, enquanto nos últimos oito meses houve redução de honorários. “Temos críticas severas aos planos com visão mercantil”, diz Eleuses Vieira de Paula, presidente da AMB.

Indicador – Os médicos recomendam aos consumidores saber quanto as operadoras pagam aos profissionais pela consulta. Quanto maior o valor, mais chance de o usuário ser atendido por alguém melhor qualificado. A importância também denuncia o tamanho do respeito que a operadora tem pelo profissional e usuário. “Se o consumidor paga R$ 400 pelo convênio e o profissional recebe R$ 10 pela consulta, a qualidade do atendimento será afetada. Essa empresa está mais preocupada com o dinheiro. É bom lembrar que uma lavagem de carro em um lava-rápido sai por volta de R$ 12”, afirma José Luiz Amaral, presidente da APM.

As críticas dos médicos vão mais além. De acordo com Vieira de Paula, da AMB, as empresas burlam a regulamentação e pressionam os profissionais para reduzir os custos dos tratamentos de seus pacientes de maneira nada ética. Na prática, isso se traduz na colocação sucessiva de obstáculos para a realização de exames mais caros, como a ressonância magnética. O tempo e as condições de internação são outros problemas. É comum as operadoras insistirem em transferir um paciente em estado grave, internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), para o quarto. “Quem não fizer isso tem desconto de 20% a 40% nos honorários”, diz Vieira de Paula. Se o médico não seguir as regras, é descredenciado. Arlindo de Almeida, presidente da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), entidade que representa boa parte das empresas, alega que as operadoras economizam em alguns casos para evitar desperdícios. “Certos pacientes visitam três médicos por dia e todos pedem o mesmo exame”, reclama.

Na campanha contra os planos, há outro alerta feito pelos médicos: poucos consumidores sabem que direitos têm ao assinar um contrato novo de convênio (consulte quadro à pág.99). É preciso saber que as empresas são obrigadas a arcar com os custos de tratamento de doenças pré-existentes, independentemente do tipo de plano escolhido. Essa obrigatoriedade passou a valer com a lei que regulamentou o setor, em vigor desde dezembro de 1999. Porém, com as novas regras, quem tem plano feito antes desta data se vê em situação mais difícil ainda. Por enquanto, para usufruir dos benefícios da nova legislação, esse consumidor precisa pagar um adicional (agravo) ou optar por um esquema no qual terá direito a essa cobertura somente depois de dois anos. Quem não concordar, tem de se contentar com as regras velhas. Ou isso ou esperar que esse grande emaranhado em que se transformou o assunto finalmente seja desfeito. Há pelo menos uma tentativa de executar essa árdua tarefa. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão do governo que fiscaliza os planos e seguros de saúde, deve definir em breve se de fato os consumidores com planos anteriores à nova lei terão de pagar o agravo.

Apesar de tanta confusão, a regulamentação, pelo menos, colocou um freio em algumas atitudes das operadoras, como a oferta dos planos. Antes as empresas decidiam livremente que tipo de serviço ofereciam aos clientes. “O mercado era completamente selvagem”, define Lucia Helena Magalhães, assessora de direção do Procon de São Paulo. Hoje as operadoras têm obrigação de oferecer o plano mais completo para o consumidor. Outro quesito solucionado na lei foram os reajustes das mensalidades, uma das principais reclamações dos clientes no Procon paulista. O aumento das mensalidades dos contratos novos e antigos passam a ser anuais, são autorizados pela ANS e devem constar no boleto de pagamento. Quem quiser se certificar ainda mais, pode consultar o site da agência (www.ans.saude.gov.br), com a lista das operadoras autorizadas a subir o preço. “Se houver denúncias, abriremos um processo contra a operadora”, informa o diretor de produtos da ANS, João Luis Barroca. O telefone para contato é: 0800611997.

Colaboraram: Francisco Alves Filho (RJ) e Ricardo Miranda (DF)

 

Mas ainda falta um bom caminho a percorrer. Só para dar uma idéia, desde que a lei entrou em vigor, ela já foi modificada por 28 medidas provisórias. Com isso, quem fica perdido, óbvio, é o consumidor. Não por acaso, os planos de saúde ficaram em segundo lugar no ranking de consultas do Procon de São Paulo, perdendo apenas para pedidos de informações sobre o sistema de telefonia. “Os usuários ligam porque não entendem os planos”, conta Lucia. Um dos principais pontos polêmicos da lei é a cobrança do valor adicional pago em casos de doença pré-existente. “As operadoras não concordam com a regulamentação, pois dizem não saber o quanto cobrar para o tratamento de doenças como Aids e câncer”, diz a advogada Flávia Reis Pagnozzi, do escritório Ferreira & Tramujas Bassaneze, em Curitiba, no Paraná. O presidente da Abramge, Arlindo Almeida, defende: “Ainda é preciso analisar a questão para as operadoras saberem o quanto cobrar.”

Aumentos – Dados do Procon de Brasília também comprovam a insatisfação dos usuários. Um em cada dez casos que chegam refere-se à queixa contra os planos de saúde. Além de denunciarem os aumentos abusivos das operadoras, os consumidores reclamam da dificuldade em obter autorização para exames e conseguir internação. Outras 100 pessoas telefonam diariamente para se informar sobre seus direitos. No Procon do Rio, as reclamações contra os convênios ocupam o sexto lugar no ranking. Até o início deste mês, haviam sido recebidas por aquele órgão 275 queixas (a Golden Cross foi a campeã, com 42 reclamações). Em São Paulo, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) recebeu, no ano passado, cerca de 2,2 mil queixas. “Uma das principais reclamações são os reajustes abusivos das mensalidades”, informa Andrea Salazar, coordenadora de campanha do instituto. A indignação das pessoas chega a tal ponto que muitas vezes é preciso recorrer aos tribunais, como mostram algumas das histórias relatadas ao longo da reportagem. É o caso da cozinheira Normanei Rezende, 40 anos, de São Paulo.

Ela processou a Blue Life porque a empresa se recusou a pagar a fisioterapia garantida no contrato. O frentista Cícero Bezerra de Lima, 26 anos, residente em Brasília, também está disposto a processar o Saúde Bradesco. Há 15 dias, ele estava na mesa de cirurgia pronto para ser operado de uma hérnia umbilical. Na hora foi informado de que não haveria mais cirurgia. Houve um desentendimento entre o plano de saúde e o hospital, que queria cobrar um cheque-caução da operadora, e foi Lima quem acabou ficando sem a operação. “É uma covardia”, reclama. Os abusos dos planos são tão absurdos que Manuel Rios, 45 anos, também de Brasília, pagou R$ 1,6 mil por uma cirurgia de astigmatismo e não conseguiu ser ressarcido pela operadora. A empresa considerou a cirurgia estética.

Irregularidades – Os problemas com os planos de saúde acontecem tanto com os contratos antigos quanto com os novos. Uma pesquisa feita por portadores de HIV (o vírus da Aids) com 23 operadoras revela que a lei atual não está sendo cumprida pelas empresas. “Nenhuma delas ofereceu o agravo”, denuncia Mário Scheffer, diretor do Grupo pela Vidda, entidade que presta apoio às vítimas da doença. Há outra evidência de que as empresas estão descumprindo a nova legislação. Num levantamento ainda não concluído, o Idec está realizando uma espécie de fiscalização para saber quem está de acordo com as novas regras. Os resultados preliminares mostram que há irregularidades. Para o presidente da APM, José Luiz Amaral, as operadoras agem dessa forma porque só querem reduzir os custos – e manter seus ganhos. O presidente da Abramge, Arlindo de Almeida, tem uma forma bastante peculiar de justificar as atitudes dos planos. “O usuário precisa se conscientizar que plano de saúde não é feito para tratar a doença, mas uma forma segura de se prevenir contra futuros males.” Traduzido pela ótica do consumidor, isso significa dizer que os planos são feitos para quem está sadio, e portanto, não vai precisar recorrer a nenhum dos recursos oferecidos, poupando as empresas de desembolsarem qualquer centavo no seu atendimento.
Para a jornalista Roseli Tardelli, fundadora da Associação Parceiros de Vida e uma das principais ativistas na defesa de pacientes portadores de HIV, nenhuma resposta justifica a ação dos planos de saúde. “Essas empresas são vampiros da cidadania”, afirma. Até mesmo os corretores de seguros e planos estão indignados. Um vendedor que não quer ser identificado desabafa: “Os convênios não cobrem as regras dos contratos e depois o consumidor reclama com a gente”, conta.

Como se vê, é como se o consumidor fosse penalizado quando fica doente e precisa usar um serviço que paga todo mês. E na opinião do psiquiatra Márcio Pinheiro, residente nos Estados Unidos, o pior é que o Brasil está reproduzindo um modelo de assistência que já se mostrou falido. “Vejo com muito maus olhos essa cópia que o Brasil está fazendo dos Estados Unidos. Poucos países, todos do terceiro mundo, estão adotando esse sistema, que, a meu ver, é muito perverso”, critica. Nem a abertura do mercado a empresas estrangeiras, permitida a partir da nova legislação, parece aliviar o calvário do consumidor. A Associação Paulista de Medicina, por exemplo, está cautelosa em relação à entrada do capital estrangeiro no setor.
E tem razões para isso. A entidade recebeu um documento que mostra como uma empresa americana de gestão hospitalar trata a classe médica. Dois dizeres chamaram a atenção da APM: “Dirigir médicos é como dirigir gatos” e “A parte mais cara do tratamento ao paciente é a caneta do médico.” O material fez parte de uma apresentação feita por Paul Mouristezen, vice-presidente internacional da New England Medical Center, de Boston, durante uma palestra sobre gestão hospitalar em Salvador. Parceira da empresa no Brasil, a New England Serviços e Participações (Nesp) se defende. “A primeira frase não foi acintosa. Foi uma brincadeira”, afirma George Schahin, presidente da Nesp. A idéia era dizer que gatos detestam ter chefes. Apesar disso, gostariam de ocupar esses postos. Quanto à caneta do médico, Schahin argumenta que os custos hospitalares estão subindo assustadoramente. E que a tecnologia avança, encarecendo esses valores. “Quem pede exames? Não são os hospitais, e sim os médicos”, diz.

Com tanta confusão, será que há alternativas de cobertura digna para tratamento de saúde? Para as empresas privadas e estatais, sindicatos, associações e fundações, a resposta é sim. Trata-se do modelo de auto-gestão – empresas integradas por médicos prestadoras de serviços. O Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, por exemplo, optou por essa alternativa depois de não concordar com os reajustes de renovação de contrato da Unimed Paulistana. “Sai mais barato porque a empresa paga apenas quando o funcionário usa o serviço”, explica Walter Lyrio do Valle, gerente médico da Associação Beneficente dos Empregados em Telecomunicações, contratada pelo sindicato. Mas, ao que parece, o consumidor que paga o plano do próprio bolso ainda terá muita briga pela frente.

 

Cobertura
Agora (a partir de dezembro de 99)

As operadoras são obrigadas a oferecer um plano de referência. Essa modalidade cobre assistência hospitalar – internação em UTI e exames complementares – e ambulatorial – consultas e exames. O consumidor com contrato antigo tem o direito de escolher se quer ou não optar pelo novo. Se preferir mudar, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) sugere que seja pago um ônus estipulado pela empresa e fiscalizado pela própria agência. Porém, essa regra está sendo estudada e os órgãos de defesa do consumidor defendem que não haja reajuste de preço caso o cliente deseje fazer o plano novo. Os usuários também podem escolher planos menos abrangentes.

Antes
As operadoras não tinham obrigação de ofertar plano de referência ao consumidor

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Doença pré-existente
Agora

Independentemente do seu tipo de plano, as operadoras passam a pagar todas as despesas (internação, exames e consultas). O usuário com plano antigo decide se prefere arcar com o agravo – um valor adicional pago às empresas – ou se deseja optar pela carência por cobertura parcial temporária. Nesse caso, vai esperar dois anos para receber assistência. Se, antes desse período, o cliente sofrer algum incidente que comprometa sua vida, como infarto, será atendido após 24 horas da assinatura do contrato e só em ambulatório.

Antes
As operadoras não bancavam os cust
os

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Descredenciamento de conveniados
Agora

A empresa é obrigada a avisar com 30 dias de antecedência os consumidores e a ANS do desligamento dos hospitais, clínicas, laboratórios e médicos

Antes
Os hospitais, clínicas e laboratórios podiam ser desligados dos planos sem aviso prévio aos consumidores

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Internação, consulta e exames
Agora

Fica ilimitado o tempo de estadia no hospital, inclusive UTI (se o plano escolhido contemplar internação), e o número de consultas e exames. A operadora também pode suspender ou rescindir o contrato, durante a internação do paciente, mesmo em caso de atraso dos pagamentos

Antes
Para contratos antigos, vale o número de consultas e exames previstos. Se o prazo de internação ultrapassar o estipulado, a ANS obriga a operadora a arcar com as despesas extras

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Variação de reajuste por faixa etária
Agora

Pode haver aumento de mensalidade por variação de faixa etária ( 0 a 17, 18 a 29, 30 a 39, 40 a 49, 50 a 59, 60 a 69, 70 ou mais). Se o valor for abusivo, deverá ser dividido pelos próximos anos. Quem tiver idade acima de 60 anos e permanecer por mais de 10 no plano, não vai precisar pagar o reajuste

Antes
As empresas subiam os preços de acordo com as faixas etárias estipuladas por elas

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Reajuste da mensalidade
Agora

Os reajustes anuais são liberados pela ANS, na data de aniversário dos contratos, e precisam constar no boleto

Antes
Os planos estipulavam livremente o valor anual e/ou a cada seis meses

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Fontes: Flávia Reis Pagnozzi, advogada especializada em seguros e planos de saúde, do escritório Ferreira & Tramujas Bassaneza, em Curitiba, Paraná, João Luis Barroca, diretor de produtos da ANS e Lúcia Helena Magalhães do Procom de São Paulo.

No Mundo

EUA
O sistema público de saúde cobre as despesas de quem ganha até cerca de US$ 1,5 mil ( o limite varia de acordo com cada Estado). O cidadão pode ser atendido inclusive em hospitais privados que depois são reembolsados pelo governo. Dois terços dos americanos têm seguros – suas despesas são reembolsadas de acordo com o tipo de seguro escolhido – e planos de saúde. Quem ganha mais de US$ 1,5 mil e não tem seguro ou plano entra em um acordo com os hospitais, clínicas e laboratórios para pagar a conta de uma forma não prejudicial a ambas as partes

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Japão
A maioria das empresas e associações, como sindicatos, dá aos funcionários e associados, respectivamente, o seguro saúde. Para ganhar o benefício, eles contribuem com pequena parcela do salário.

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Inglaterra
Sistema similar aos dos EUA

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Argentina
O sistema é semelhante ao brasileiro, mas as companhias de seguro, que fornecem reembolso pelo atendimento, dominam o mercado

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Proteja-se
Cuidados importantes para escolher o seu plano de saúde

1) Leia atentamente todo o contrato e exija a cópia
2) Cheque nos órgãos de defesa do consumidor e na Agência Nacional de Saúde Suplementar se há denúncias contra a operadora
3) Certifique-se da cobertura das doenças pré-existentes e da garantia de tempo ilimitado de internação e número de consultas e exames
4) Não se esqueça de mencionar se você é ou não portador de alguma doença grave, como câncer ou Aids
5) Compare os documentos de uma empresa com outra
6) Se for necessário, peça ajuda para entender melhor o contrato, pois alguns deles podem ter armadilhas

 

* Valor pago aos médicos pela consulta. Quanto mais elevado, melhor a qualidade do atendimento

** Recebidas pelo Procon de SP, pela Associação Paulista de Medicina, pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo e por médicos que preferem ficar no anonimato