Foram 15 meses de árduo e ininterrupto trabalho. Tom Cruise e Nicole Kidman lembram que em muitos dias as filmagens se estendiam por 18 horas corridas. Algumas cenas foram refeitas mais de 100 vezes até que atingissem a tão venerada perfeição. Ao terminar a edição de Eyes wide shut – ainda sem tradução no Brasil, mas algo próximo a Olhos bem fechados –, Stanley Kubrick, um dos mais cultuados e misteriosos diretores americanos de cinema, foi dormir satisfeito e contente, já bem tarde da noite do sábado 6. Horas antes, durante uma longa e divertida conversa telefônica com um amigo executivo da Warner Brothers, o cineasta confessou: "Este é meu melhor filme." Na manhã do domingo 7, sua mulher, Christiane, o encontrou morto na cama. A autópsia confirmou o que a família suspeitava. Kubrick, que faria 71 anos em julho, morreu de parada cardíaca enquanto dormia. A notícia surpreendeu o mundo das artes cinematográficas. Como era um sujeito recluso, excêntrico, que quase nunca saía de sua mansão nos arredores de Londres, onde estava radicado há 38 anos, acabava alimentando uma imagem lendária.

Fãs mais dedicados aguardam ansiosamente o lançamento de sua última obra, realizada como de costume em segredo absoluto. Se é ou não seu melhor filme, só se confirmará a partir de 16 julho, data prevista para a estréia nos Estados Unidos e na Europa – no Brasil deve entrar em cartaz só em setembro. Infelizmente, nunca se saberá o que poderia ter sido seu próximo projeto, AI (Artificial inteligence), ficção científica sobre inteligência artificial, que pretendia superar o maior sucesso de sua carreira, 2001 – uma odisséia no espaço (1968). Ou então a obra que ambicionava há décadas, um filme sobre o imperador Napoleão. Mas o pouco que se conhece sobre Eyes wide shut promete repetir o impacto do polêmico Laranja mecânica (1971) ou do ainda muito atual Lolita (1962). Inspirado no livro Sonhos oníricos, que o dramaturgo austríaco Arthur Schnitzler escreveu em 1926, Eyes wide shut enfoca nos dias de hoje as experiências sexuais de um casal de psicólogos (Cruise e Kidman) com pacientes e desconhecidos escolhidos na rua. Há boatos de que os dois atores, casados na vida real, filmaram cenas de sexo com um grau de realismo inédito para os padrões da grande indústria do cinema. Por enquanto, o que se sabe é que os 90 segundos de um trailer exibido na semana passada em Las Vegas contemplou uma nudez que Nicole Kidman só havia revelado no teatro. É certo que tanto ela e Cruise quanto dois diretores-executivos da Warner, os únicos que por enquanto assistiram à edição final, ficaram satisfeitíssimos com o resultado de Eyes wide shut.

Nascido em 1928, Kubrick começou sua carreira como um prodígio aos 17 anos. Mas sua ascensão começou aos 29 em Glória feita de sangue (1957), com Kirk Douglas, considerado um dos melhores filmes antibelicistas de todos os tempos, proibido até hoje na França. Três anos mais tarde, o próprio Douglas convenceu os produtores de Spartacus a contratar Kubrick para dirigir o famoso épico. Embora tenha feito sucesso, o cineasta não gostou da ingerência e da pressão exercida pelos chefões de Hollywood. Foi o motivo que precisava para mudar-se de vez para a Inglaterra, em 1961. Lá, realizou Lolita, com James Mason, Peter Sellers e a ninfeta Sue Lyon. Mas foi com Dr. Fantástico (1963) que ele obteve seu primeiro grande sucesso de bilheteria. Em 1968 veio o brilhante 2001, que consumiu quatro anos de trabalho. A excelente recepção deste clássico é mais extraordinária ainda se for levado em conta que é um trabalho basicamente experimental, sem uma trama convencional e cujo principal personagem é um computador de características tão "humanas" quanto as da dupla de astronautas que o acompanha numa viagem mortal até Júpiter. Depois vieram Laranja mecânica – até hoje proibido na Inglaterra –, que questiona de forma violenta a liberdade de escolha do homem num futuro não muito distante, e Barry Lyndon (1975), seu menor sucesso.

Cinco anos depois, Kubrick voltou a chocar platéias com o insuperável suspense de terror O iluminado, tendo Jack Nicholson no papel do assassino Johnny. O penúltimo filme do diretor foi Nascido para matar (1987), que se destacou numa safra de vários trabalhos sobre o mesmo tema, a Guerra do Vietnã. Nos 40 anos de uma dedicação quase doentia à sétima arte, Kubrick foi bastante eclético na escolha de seus temas. Mas todos se desenvolveram sob um denominador comum: a busca incessante da melhor técnica cinematográfica para mostrar uma visão negativa – que ele considerava absolutamente realista – da existência humana. Desde Nascido para matar, houve um hiato de dez anos até o início das filmagens de Eyes wide shut, em 1997.

Neste período, chegou a trabalhar em vários projetos que nunca saíram do papel, como AI. Mesmo longe de Hollywood há 38 anos, era considerado um mestre pelos melhores diretores americanos, entre eles Steven Spielberg. "Ele nunca copiou ninguém, enquanto todos nós corríamos para imitá-lo", declarou o diretor de A lista de Schindler. O italiano Roberto Benigni, de A vida é bela, definiu Kubrick como "um dos gênios deste século" e Oliver Stone admitiu ter sido influenciado por ele. Para vários críticos de Los Angeles, não será surpresa se durante a festa do Oscar no domingo 21, Stanley Kubrick for homenageado com um prêmio póstumo.