A desvalorização cambial de janeiro de 1999 é tida até por economistas de oposição como bem-sucedida quando o tema é o efeito da alta do dólar sobre os preços internos. Ainda que alguns deles tenham andado com velocidade muito superior à média, a inflação, de modo geral, está sob controle. A “farra” do dólar barato, entretanto, não passou em branco. Na verdade, deixou uma bomba-relógio armada no colo do País: uma dívida externa que no final do ano passado já era superior a US$ 240 bilhões, uma sombra no sexto aniversário do Plano Real. Quase metade da dívida – cerca de US$ 100 bilhões – foi contraída entre 1994 e 1999. Em um estudo sobre 137 países divulgado recentemente, o Banco Mundial, uma instituição ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), expôs a gravidade da situação. Classificou o Brasil como um dos 11 países de renda média “gravemente endividados” no mundo. Argentina, Bolívia, Bósnia, Bulgária, Equador, Gabão, Guiana, Jordânia, Peru e Síria foram colocados no mesmo barco. A situação é especialmente delicada quando se considera a conjuntura internacional. Os juros internacionais estão subindo e isso, para o bloco dos devedores, significa que a cada mês eles terão de enviar mais e mais dólares ao Exterior para pagar o que devem. A grande questão é descobrir de onde virão esses dólares.

As exportações, claro, aparecem como o caminho mais eficiente para faturar em moeda forte. Mas o que País exporta atualmente será suficiente? A economista e ex-deputada federal Maria da Conceição Tavares acha que não. Ela defende um plebiscito sobre a dívida externa. “O Brasil só exporta praticamente produtos agrícolas. O único produto de ponta são os aviões vendidos pela Embraer, e um ou outro equipamento eletrônico. Mas o mercado internacional está abarrotado de commodities agrícolas, e os preços estão baixos. Por isso, mesmo que o País faça um esforço exportador, não resolverá o problema”, diz Conceição Tavares. Além de exportar mais, será preciso, de acordo com a economista, pensar em outras alternativas, como impor limites às entradas e saídas de dólares no mercado financeiro brasileiro ou aumentar os impostos que incidem sobre esses capitais. Ela dá um exemplo da situação insustentável: somente no ano passado, o Brasil pagou US$ 64,5 bilhões, entre juros e amortizações, quase duas vezes o valor das reservas em dólar que o país possuía. Em 1994, essa conta representava metade das reservas. “A Europa começou a discutir a dívida dos países africanos, mas eu não quero que o Brasil chegue à mesma situação deles para ter sua dívida reavaliada, é essa a questão”, diz ela. Dentro da mesma linha de raciocínio, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) pretende realizar um plebiscito para discutir a dívida acumulada. A data escolhida foi 7 de setembro.

Mas o alerta não soou apenas entre a oposição à esquerda. O ex-ministro do Planejamento e deputado federal Delfim Netto (PPB) manifestou recentemente sua preocupação com o tema, em um artigo intitulado “Sempre a exportação”, na Folha de S.Paulo. A ISTOÉ, Delfim mencionou os problemas que o País enfrentará, agora que precisa vender mais no Exterior para faturar em dólares: “As taxas de juros elevadas por muito tempo e o câmbio congelado tornaram o setor exportador um dos mais arriscados nos últimos anos, e ele já foi dos mais atraentes para os empresários brasileiros.” A questão, de acordo com o deputado, é que o governo simplesmente deixou de ter uma política industrial. E esse desmanche atingiu também o setor exportador. “Na Coréia e na Tailândia, a exportação é forte. Mas isso não é obra do acaso, nem foi o mercado que fez. Achar que só o mercado resolverá o problema é um grande erro”, considera.
A saída seria, diz Delfim, apostar todas as fichas no crescimento das exportações. E aí será preciso correr atrás do prejuízo acumulado. O Brasil perdeu posições no ranking internacional e, somadas as importações e exportações, o País representa apenas 0,9% do comércio mundial. Em 1984, a fatia brasileira nesse bolo significava 1,4%.

A colocação ruim do Brasil na classificação feita pelo Banco Mundial se deve justamente a esse desempenho. Isso porque o organismo internacional levou em conta dois fatores na hora de realizar o estudo. O primeiro é a relação entre a dívida externa do País e o total de bens e riquezas nacionais, o Produto Interno Bruto (PIB). Como o PIB brasileiro é grande, próximo de US$ 760 bilhões, o resultado do cálculo foi favorável ao Brasil. A dívida em dólar representa 28%, o que deixaria o Brasil numa situação confortável, já que o critério usado pelo Banco Mundial considera “moderadamente endividado” o país que possua uma relação entre dívida e PIB inferior a 48%. A situação muda de figura por conta do segundo fator, o que mediu o peso da dívida com relação à exportação. Todas as dívidas brasileiras somadas representam quase quatro vezes o total de exportações anuais da economia brasileira. O índice exato encontrado pelo Banco Mundial é de uma dívida 347% maior do que as exportações. Muito superior ao limite de 132%, abaixo do qual o País seria considerado endividado em um grau moderado.

A situação da Argentina, o principal parceiro regional do Brasil, também é bastante preocupante – e chega a ser mais mais grave do que a brasileira (leia quadro acima). Por qualquer um dos dois critérios, a economia argentina é considerada “gravemente endividada”. O problema é ainda mais complicado por conta da situação cambial do país, longe do equilíbrio. Um peso argentino vale um dólar, e a moeda valorizada funciona para deteriorar ainda mais as contas externas do país. Basta dizer que o país deve o equivalente a mais da metade do valor do seu PIB. Ruim também para o Brasil, já que os dois países costumam ser vistos pelos credores internacionais como farinha do mesmo saco. E os números do Banco Mundial devem servir para reforçar essa impressão.