Cabisbaixo, retraído, o padre Valeriano Painoti deixou transparecer, na missa celebrada na quarta-feira 5, às 19h30, as sequelas de uma semana repleta de reprimendas e ameaças de punição. O discurso contundente que costuma encantar os fiéis da paróquia do Imirim, em São Paulo, foi trocado por meias palavras. Sua retórica permaneceu, diluída nas entrelinhas: “Rezemos pelos que já morreram e por quem ainda pode vir a falecer”, disse, durante o culto. Quem sabe de seu trabalho no combate à Aids entendeu o recado. Há 16 anos o sacerdote enfrenta a Igreja, prega o uso da camisinha e as distribui na tentativa de conter o avanço da doença. Mas, desta vez, teria ultrapassado limites. Anunciou a produção de um vídeo no qual questiona o posicionamento do Vaticano – irredutivelmente contrário aos preservativos. Comprou uma briga e tanto. E está provocando uma guerra. O assunto virou polêmica, abalou alicerces do catolicismo, deixou irritados governo e especialistas no combate à pandemia que já matou 18,8 milhões de pessoas em todo o mundo. O padre ganhou adeptos de peso. “Repreender este padre é remar contra a maré da história. Os índices de HIV podem aumentar a curto prazo”, sentenciou o infectologista Caio Rosenthal. O Ministério da Saúde foi além. “A opinião ultrapassada de alguns setores da Igreja pode fazer regredir toda uma campanha de prevenção e uso de preservativos, que impediu novos 350 mil casos no País”, afirmou Alexandre Grangero, coordenador do Programa Nacional de Combate à Aids.

Grangero fez questão de usar o termo “setores da Igreja”. E está correto. A intransigência proveniente de Roma concentra-se em alguns cardeais e bispos. As bases eclesiásticas há tempo estão na luta contra a Aids. Tanto é verdade que das 500 ONGs filiadas ao Fórum de ONGs/Aids, cerca de 200 têm a participação de padres. Padre Valeriano identifica uma divisão profunda: “O arcebispo do Rio, dom Eugênio Sales, comanda uma igreja paralela”, acusou. Dom Eugênio assinou, junto com dom Cláudio Hummes, cardeal-arcebispo de São Paulo, uma nota de repúdio ao padre.

Mas não é só no papel que o conservadorismo católico dá o ar de sua graça. Dom Paulo Evaristo Arns, ex-arcebispo de São Paulo, sofreu retaliações do Vaticano há algum tempo ao pregar a teoria do “mal menor” em relação aos preservativos. Longe dos holofotes do poder católico, padres como José Transferretti, de Campinas, conseguem realizar trabalhos irrepreensíveis. Transferretti, audacioso, escolheu os travestis. Na mira de seus superiores – “eles sempre olham para o meu trabalho” –, o padre optou por orientar seu “rebanho de risco” pelo que chama de linha da cidadania. “Explico a posição do Vaticano e a teoria do mal menor. Eles decidem”, diz.

Algumas religiões rezam na mesma cartilha. Nas sinagogas, jovens são orientados a usar camisinha, enquanto recebem lições sobre fidelidade. O mesmo ocorre na Igreja Universal do Reino de Deus. Já os presbiterianos preferem deixar o crente escolher seu caminho, dentro dos preceitos da Bíblia. “Essa intransigência do papa João Paulo II, que ignora o descompasso entre as doutrinas rígidas e a sociedade do ano 2000, é uma das causas da perda de fiéis”, explica Ricardo Mariano, doutorando em Sociologia da USP. Apesar de entender como um atraso a atitude do Vaticano, o sociólogo é menos fatalista. “Dos católicos no Brasil, apenas 5% se dispõem a seguir normas que tratam de suas vidas privadas. Mas o fato de a Igreja não participar da campanha de prevenção à Aids pode prejudicar ainda mais sua imagem”, diz.