O prefeito de São Paulo, Celso Pitta, começa a entregar os anéis para não perder os dedos. As investigações sobre a máfia dos fiscais nas administrações regionais de São Paulo virou uma bola de neve e vem causando estragos à já desacreditada administração pepebista. Não tem escapado ninguém na prefeitura, de agentes do rapa (responsáveis pela apreensão de mercadorias) a vereadores governistas, secretários, administradores regionais e assessores. Vinte e seis acusados continuavam presos até a sexta-feira 12. Um dia antes, Pitta se viu obrigado a demitir o secretário de Obras e Vias Públicas Alfredo Mário Savelli – até então o seu homem forte no governo –, acusado de envolvimento no esquema de cobrança de propinas. Pitta bem que tentou segurá-lo. Fez declarações públicas de apoio a Savelli, rechaçando as acusações, na manhã da própria quinta-feira. "A menos que haja uma evidência insofismável de seu envolvimento em algum esquema irregular, é pessoa de toda a confiança", afirmou o prefeito durante uma solenidade, poucas horas antes de anunciar a demissão. Savelli, que foi secretário das Administrações Regionais entre 1997 e 1998, já havia sido indiciado na polícia sob acusação de prevaricação (deixar de cumprir a função pública) e formação de quadrilha.

Omissão
Ele foi, no mínimo, omisso, segundo líderes dos ambulantes. Na última semana, eles encaminharam ao Ministério Público documentos que comprovariam que Pitta e Savelli já tinham conhecimento das denúncias de cobrança de propinas. Entre esses documentos, está a transcrição de uma audiência pública na Comissão de Política Urbana na Câmara Municipal de São Paulo, no dia 13 de abril do ano passado, da qual o próprio secretário participou. "Denunciamos que um de seus assessores próximos, o Hélio Furmankiewicz, preso recentemente, estava envolvido no esquema. O secretário pediu para fazer a denúncia por escrito que ele levaria até as últimas consequências, mas nada foi feito", reclama Marcos Maldonado, ligado ao Sindicato da Economia Informal. Maldonado lembra que ele e outros dirigentes de associações de camelôs também se reuniram com o próprio Pitta no início de maio de 1998, quando as denúncias lhe foram entregues em mãos. "O prefeito leu, não fez nenhum comentário e repassou o documento para o Savelli."

No último dia 5, outro depoimento dado à polícia reforça essas afirmações. Lúcio Santos, presidente da Ação Social, uma entidade que oferece segurança a lojistas, disse que também teria informado pessoalmente o prefeito Celso Pitta sobre o esquema de corrupção nas regionais, em quatro oportunidades. Até o vice-prefeito, Régis de Oliveira (sem partido), nomeado corregedor da administração municipal, veio a público dizer que "com certeza absoluta, todos os órgãos institucionais tinham ciência do que se passava". Depois, tentou livrar a barra de Pitta, em nota divulgada à imprensa, dizendo que não era bem isso o que quis dizer.

Temendo o início de um processo de impeachment, o prefeito reuniu na quinta-feira 11 seus principais auxiliares para comunicar a saída de Savelli e o fim do acordo que previa o loteamento das administrações regionais. Essas duas decisões já teriam sido resultado de um pedido de socorro a velhos líderes do malufismo, que pareciam assistir impassíveis ao naufrágio de Pitta.

Vôo próprio
Além do desgaste com o caso da máfia dos fiscais e as enchentes que arrasaram São Paulo nos últimos 40 dias, Pitta sofre com uma guerra fratricida em sua administração entre as várias correntes do malufismo, sobre as quais não tem controle. Por isso, ele tem levado para a administração quadros recrutados no PMDB como o secretário de Governo, Carlos Meinberg, que assumiu em novembro. Na última semana trouxe a ex-secretária estadual do Menor, Alda Marco Antonio, para a Secretaria de Bem-Estar Social e pensa no quercista João Leiva para substituir Savelli. Mais uma vez, tenta alçar vôo próprio. Isso tem gerado fortes críticas entre os velhos caciques do malufismo. O ex-prefeito Paulo Maluf está irritado com Pitta, mas sem condição de reclamar muito porque o esquema de loteamento das administrações ganhou força com ele.

Outras relações perigosas também podem continuar causando embaraços a Pitta. O ambulante identificado como A. M. N., que trabalhava como funcionário da Associação dos Camelôs Independentes – responsável pela arrecadação de dinheiro no viaduto Santa Efigênia, no Centro –, garante que uma diretora da entidade, Misae Tamashiro, conhecida como Salete, foi coordenadora do comitê feminino de Pitta, na Bela Vista, em sua campanha. Ela seria próxima da mulher do prefeito, Nicéa Pitta. Misae admitiu apenas ter sido a coordenadora do comitê conjunto de Pitta e do vereador Hanna Garib, que era o responsável pela administração da Regional da Sé e um dos principais envolvidos nas denúncias do propinoduto. "Tive bastante contato com a Nicéa, mas só durante a campanha eleitoral", ameniza Misae.

O inferno astral de Pitta, entretanto, não deve terminar tão cedo. A CPI da Câmara Municipal de São Paulo iniciada para investigar a máfia dos fiscais deve manter o caso na mídia ainda por um bom tempo. Novas denúncias e descobertas podem continuar abatendo fiéis aliados do malufismo. Um deles é no momento um fugitivo da Justiça, o vereador Vicente Viscome (PPB), que teve a prisão decretada na terça-feira 9. Com um patrimônio oficial de R$ 16,5 milhões, Viscome é dono de 57 prédios comerciais, 37 apartamentos e 26 casas, entre outros bens. Ele foi apontado como o chefe da máfia na Penha por sua secretária e namorada, Tânia de Paula. Presa, ela detalhou à polícia todo o esquema de arrecadação e divisão do dinheiro. "Na cadeia, me chamam de Monica Lewinsky. Elas (companheiras de cela) dizem que, no Primeiro Mundo, eles pegam a amante do presidente. Aqui, basta a mulher do vereador", comentou a assessora, ao ser libertada na terça-feira 9, depois de passar sete dias na prisão. A situação de Pitta está tão complicada que até um grupo de aposentadas resolveu botar o bloco na rua contra o prefeito. Fantasiadas de tiazonas, elas foram até a Câmara Municipal exigir punição para todos os envolvidos. Elas querem o couro deles.

"Propina rende R$ 30 milhões"

O esquema de cobrança de propinas nas administrações regionais de São Paulo rende mensalmente cerca de R$ 30 milhões. A estimativa é do promotor José Carlos Blat, coordenador do grupo de quatro promotores responsáveis pela investigação da máfia dos fiscais, que já resultou na prisão de 48 pessoas. Casado, 35 anos e promotor há apenas cinco, Blat tornou-se conhecido a partir de 1997, ao prender e conseguir a condenação de sete dos dez policiais militares envolvidos no caso da Favela Naval, em Diadema (Grande São Paulo). Ali, os PMs torturavam e extorquiam moradores e pelo menos um foi morto. Agora, Blat volta à cena caçando fiscais corruptos.

ISTOÉ Esse caso está tomando proporções gigantescas. Até onde ele vai?
José Carlos Blat Estamos investigando vários tentáculos dessa corrupção em outras secretarias. Chegando nos vereadores e em outras pessoas da administração pública, eles serão punidos.

ISTOÉ – Por que foi decretada a prisão do vereador Vicente Viscome?
Blat Ele é considerado o chefe do esquema na administração regional da Penha. É um mafioso. Há provas contundentes contra sua pessoa. A amante e secretária dele (Tânia de Paula) confirma que ele é o chefe da quadrilha. Já foi indiciado no passado por tentativa de homicídio, falsificação de documentos e outros crimes.

ISTOÉ – Qual a responsabilidade de Pitta nesse caso?
Blat Não podemos responsabilizar o prefeito por atos praticados por terceiras pessoas, sejam elas secretários ou administradores regionais. Se o prefeito delegou a uma terceira pessoa que fizesse ou deixasse de fazer alguma coisa, é essa pessoa quem deve ser responsabilizada.

ISTOÉ – Mas os ambulantes têm repetido que várias denúncias foram levadas ao prefeito e ao ex-secretário das Administrações Regionais Alfredo Mário Savelli, mas eles não apuraram o caso. Não podem ser denunciados por prevaricação?
Blat É necessário algum elemento de prova que comprove a omissão por parte do poder constituído. Tudo isso está sendo investigado.

ISTOÉ – Quanto os vários propinodutos da prefeitura movimentam hoje?
Blat Só os camelôs do centro movimentam R$ 1,2 milhão ao mês. Fora o esquema de habite-se, o de alvarás de licença de funcionamento, de publicidade, bancas de jornais, lixo, multas, estacionamento, etc. Na periferia, também existem os loteamentos clandestinos. Na região Sé, o total arrecadado pode gerar mais de R$ 3 milhões ao mês. Pelo menos outras quatro regionais – Pinheiros, Lapa, Santo Amaro e Mooca – também chegam à mesma marca. Em todas as regionais afetadas existe um comércio intenso e 95% dele está em situação irregular. Calculando-se, em média, R$ 1 milhão arrecadado em cada uma, chegamos quase aos R$ 30 milhões.

ISTOÉ – Mesmo depois de todas as prisões, ambulantes e comerciantes dizem que a cobrança de propinas continua.
Blat – É realmente de causar perplexidade. Essas pessoas envolvidas têm salários de R$ 900 a R$ 1,5 mil, no máximo. Mas acabaram incorporando os valores mensais da caixinha aos seus vencimentos, como se fosse um dinheiro fixo. Temos casos comprovados de fiscais que incorporavam mais de R$ 5 mil ao mês a seu salário. Exemplo: tem cidadão que ganha R$ 1 mil por mês e paga isso de condomínio. Um outro fiscal do rapa ganha R$ 350 por mês e tem uma Pathfinder – uma perua importada – e um Vectra 98.

ISTOÉ O sr. sofreu pressões no caso da Favela Naval. Essa situação se repetiu agora?
Blat Naquela época, vieram pressões enormes de vários segmentos, inclusive da própria tropa da PM, que não se conformava. Neste caso da máfia, por incrível que pareça, não sofri nenhuma ameaça. Provavelmente, por causa do respaldo que estamos tendo da imprensa e da sociedade civil.