Quando Paulo, Rita, Gisele, Karaí, Jussara, Bianca e José Cláudio nasceram, há cerca de dez anos, o Brasil discutia uma lei para garantir a eles o direito a educação, saúde e diversão, além de protegê-los de toda a forma de discriminação e violência. Agora que o Estatuto da Criança e do Adolescente está completando o seu décimo aniversário, essa garotada se dispôs a mostrar à sociedade o impacto do documento, apelidado de ECA, em suas vidas. A convite da ISTOÉ, cada uma das sete crianças recebeu uma máquina fotográfica para retratar diferentes realidades da infância brasileira. Revelaram uma diversidade de imagens que vão de um condomínio fechado da Barra da Tijuca, no Rio, aos mendigos da praça da Sé, em São Paulo.
Paulo Henrique, 12 anos, por exemplo, gastou um filme de 36 poses em menos de uma hora nas ruas do centro da capital paulista, onde passou parte de sua infância. Há três anos, fugiu de casa por conta das agressões ora da mãe, ora da mulher incumbida de tomar conta dele. “Ela dizia que se eu contasse para alguém iria me bater ainda mais”, acrescenta o menino, com os olhos cheios de lágrimas. Assim que deixava o albergue para crianças carentes, onde dorme, toma banho e se alimenta há dois meses, disparou sua primeira foto, de uma viatura de polícia que passava em frente à sede. Mal mudou o ângulo da câmera e já flagrou dois meninos pedindo comida num restaurante. Esses dois temas, repressão e miséria, permaneceram em quase todo o resto do filme. “A rua é a pior coisa que existe no mundo. Eu queria que os governantes vissem isso”, afirma.

Dos 267 artigos do estatuto apresentados a Paulo assim que chegou ao albergue, ele cita dois, que considera os mais importantes: ninguém pode bater em criança e todos têm direito a carinho e respeito. Para o coordenador do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, João de Deus, essa conscientização sobre a existência do estatuto é a maior conquista nos dez anos do documento. “Posso garantir que uma em cada dez crianças já teve acesso ao ECA. Já na nossa geração, menos de 1% dos adultos conhece a Constituição brasileira”, explica. A parte que cabe à lei, de não mais considerar a criança e o adolescente como o adulto menor de idade, vem sendo cumprida de um modo até satisfatório. O problema é que, sem políticas públicas que ofereçam melhores condições de vida às famílias dessas crianças, não há conscientização que dê jeito. Se comparado com o Código de Menores – lei de 1907, que antecedeu o ECA até a Constituição de 1988 –, o estatuto representa uma evolução inquestionável. Enquanto o antigo documento listava apenas os deveres de quem tinha menos de 21 anos, a nova legislação fala antes em direitos e, por essa razão, tornou-se uma referência mundial na questão da infância e da adolescência. “O ECA absorveu muito o impacto social da crise dos anos 90”, resume Leonardo Brancher, da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e da Juventude.

Guerra – Não fosse pelo trabalho da artista plástica Yvone Bezerra de Mello, o projeto Uerê, na Baixa do Sapateiro, uma das favelas do Complexo da Maré, zona norte do Rio, a menina Bianca, 11 anos, ficaria em casa sem ter o que fazer. Longe da escola há três anos, ela desistiu de estudar, pois o colégio mais perto do seu barraco fica na Nova Holanda, favela vizinha, onde os moradores da Baixa não entram. Bianca faz parte do elevado índice de crianças com atraso escolar no País. Cerca de 62% dos alunos com 11 anos de idade estão cursando série escolar anterior à adequada. Nas fotos tiradas, a menina tentou mostrar o desejo de um futuro diferente, com a mesma alegria que as crianças do Uerê posavam diante da sua câmera. Quando crescer, quer ser médica para proporcionar aos carentes o cuidado que não teve. Há oito meses, Bianca quebrou a tíbia esquerda. Socorrida num hospital público, teve a perna engessada do lado errado. Vai mancar pelo resto da vida.

O sonho de se tornar médico está mais próximo de José Cláudio, o Kiko, 11 anos. Morador de um condomínio de classe média alta no Rio, é aluno da quinta série em escola particular. Da Barra, o menino só sai para visitar o pai em Niterói ou quando vai ao Maracanã ver o Fluminense jogar. Mesmo inserido numa realidade diferente à de Bianca, Kiko é consciente de que o ECA serve para todos. “As pessoas precisam ajudar os pais dessas crianças que ficam pedindo dinheiro nos sinais”, afirma o garoto. Habituado com brinquedos eletrônicos, não teve dificuldade em manejar a máquina para fotografar o computador e o quarto em que passa a maior parte do tempo.

Já a catadora de papel Rita, 11 anos, não teve a mesma habilidade com o equipamento, pois era a primeira vez que tirava uma fotografia. Não quis registrar o Palácio do Planalto, situado a menos de um quilômetro da “sua casa”. Preferiu fotografar as carroças de papel. Do seu barraco de lona, Rita consegue enxergar a Bandeira Nacional, a “baciona” e o “bolo”, como ela chama a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Rita morre de medo de ser pega pela polícia e ir parar no SOS Criança, até porque não se considera criança. Com apenas 11 anos de idade, já tem responsabilidade de gente grande. Diariamente, passa quatro horas vigiando o lixo do Supremo Tribunal Federal, o ganha pão da sua família. A cada novo carregamento, ela separa o papel para vender. Rita está matriculada na segunda série numa turma de aceleração escolar. Nos últimos 40 dias, foi a apenas três aulas. Disse que andava cansada por estar trabalhando muito. Apesar de o estatuto ter um capítulo inteiro condenando o trabalho infantil, Rita se considera uma criança feliz. “Pelo menos meu padrasto não bebe e minha mãe não me bate”, diz.

Colaboraram: Isabela Abdala (DF) e Letícia Helena (RJ)

Pior é a situação do guarani Karaí Poty, 12 anos, que nem sequer ganhou do ECA um artigo para comentar sua condição indígena – fato que, segundo ele, não faz diferença. O garoto não sabe o que quer dizer a palavra estatuto, mas nem por isso deixa de fazer um pedido à sociedade. “Eu queria que a gente não fosse lembrado só no dia 19 de abril”, diz Karaí Poty, Deus das Flores em guarani. Na sua aldeia, uma maloca na reserva ecológica do Pico do Jaraguá, em São Paulo, moram 20 famílias que vivem da venda de peças de artesanato, apresentação de danças folclóricas em eventos e ajuda de voluntários. Plantar naquele reduzido espaço é uma atividade quase impossível. Por isso, o pé de café em que ele e seu irmão gêmeo adoram se pendurar para brincar foi bastante valorizado na escolha dos assuntos que fotografou. Também tirou foto do lago poluído que adentra seu quintal e dos índios menores, franzinos, vítimas da desnutrição.

Para Benedito Prezia, do Conselho Indigenista Missionário, órgão ligado à CNBB, é imprescindível a existência de uma lei específica já que esse grupo possui um universo cultural diferente. “Se para os meninos de rua carentes a prática do estatuto é um sonho distante, para os índios essa lei está mais inacessível ainda.” Karaí está na quarta série, mas não sabe ler nem escrever. Na escola, ele desperta curiosidade da turma e funciona como uma espécie de tradutor do português para o guarani.

Parteira – A condição social de Gisele, 12 anos, também chegou a atrair a atenção dos colegas de escola. Hoje vivendo num assentamento em Tremembé, no interior de São Paulo, ela conta que chegava em casa triste por conta das críticas feitas aos sem-terra quando sua família e outras 20 ocuparam fazendas no local há quatro anos. Tirou fotos da sua cabrita de estimação, de nome Bita, que ajudou a nascer durante um parto complicado feito por ela mesma. Longe do discurso político do MST, ela pensa ser veterinária ou modelo. Nunca ouviu falar do estatuto, mas acha que os governos deveriam ajudar “os pobres que viram mendigos nas ruas”. Seu sonho é ter uma casa “de verdade”, pois acha feio o galpão de madeira em que mora, cujos cômodos são separados por lençóis.

A criança com a maior consciência do estatuto, Jussara, dez anos, é a que também conquistou todas as boas condições previstas na lei. Desde que perdeu a mãe aos quatro anos, vive num orfanato em São Paulo, a Casa Vida, administrada pelo padre Júlio Lancellotti, um dos principais defensores dos direitos humanos. Sua máquina registrou aquilo que está no seu imaginário: o jantar sendo feito, centenas de bonecas, o quarto espaçoso e a imagem de santos para quem reza pedindo pelos adolescentes internos na Febem e pelas crianças portadoras do vírus do HIV que convivem com ela. “Quero me formar em Direito para defender essas pessoas”, diz. Se tudo funcionar de acordo com a vontade dessas crianças, o Brasil ganhará nas próximas décadas personagens dispostos a mudar a história da infância brasileira. Jussara vai virar advogada e lutar pelos direitos que hoje contempla na Casa Vida. O País também terá na dedicação de Bianca uma médica que jamais prejudicará alguém por negligência. José Cláudio poderá se aprofundar em pesquisas e descobrir a cura de doenças. Karaí realizará o sonho de trabalhar como dentista na aldeia em que vive. A veterinária Gisele prestará consultoria a produtores rurais. Só Rita e Paulo ainda não decidiram o que serão quando crescer. Ainda nas ruas, eles não se deram o direito de sonhar com o futuro.

Colaboraram: Isabela Abdala (DF) e Letícia Helena (RJ)