Uma criança está sentada num terreno à avenida Alves Aldeia, na confluência com rua Américo Thomaz, no centro de Díli, capital do Timor Leste. Aquela área costumava ser um maltratado jardim à beira-mar, perto do porto principal da cidade. Agora, o local está entulhado de lixo. A seu redor, a cidade queima. E é quase um milagre que soldados acompanhando o LAV-25 – um veículo blindado com monstruoso conjunto de oito pneus – tenham visto o menino franzino. O cabo Patrick Butler, do Exército australiano, pula do blindado e vai resgatar a criança. O garoto tem uma expressão paralisada: está em estado de choque e com inanição. Depois se descobriria que a criança, de um ano de idade, se chama Abel Espírito Santo e sua mãe partira em busca de comida.

A cena é exemplar. Timorense é salvo por tropas da Força Internacional para o Timor Leste (Interfet). Mas qual será o futuro desta gente? Santo Agostinho – venerado nestas terras onde o catolicismo é profissão de fé e ideologia de resistência – disse que os homens nascem entre fezes e urina. Abel, assim, é simbólico: em seu berço, no meio de entulhos, restos de saques e toneladas de excrementos humanos, ele representa o nascimento da nação Timor Loro Sae (expressão tetum, dialeto local, que significa sol nascente). O parto sangrento começou no dia 30 de agosto com um referendo em que 78,5% da população desta ex-colônia esquecida de Portugal decidiu pela independência da Indonésia.

Inconformados, grupos paramilitares antiindependência mergulharam a ilha numa orgia de sangue. As forças multinacionais que desembarcaram no dia 20 de setembro para impor a paz – num total de 7.500 homens, inclusive os 51 brasileiros da PE, que chegam nesta semana ao teatro de operações – são parteiras cautelosas em sua difícil tarefa.

Igreja da resistência – A Igreja Católica é como uma avó deste nascimento. Padres, freiras e beatos foram chacinados de modo especial nestes dias dramáticos. Oito deles perderam a vida, juntamente com um jornalista indonésio, ao tentar levar mantimentos a refugiados. Seus corpos foram encontrados num riacho perto de Lospalos, ao norte. O ódio indonésio aos católicos vai além das diferenças religiosas – a Indonésia é o maior país muçulmano do mundo. A resistência ao domínio de Jacarta tem como figura icônica o cardeal Carlos Ximenes Belo, prêmio Nobel da Paz em 1996. Sua ordem, os salesianos, está na vanguarda da assistência aos independentistas. Pegue-se o exemplo da irmã Marlene Bautista, que saiu da tranquilidade de sua Long Beach, na Califórnia, para enfrentar o fogo inimigo nos subúrbios de Díli. No convento onde mora, ela abrigou cerca de 300 refugiados e enfrentou milicianos com coragem. Na segunda-feira 27, a freira revelou em entrevista a ISTOÉ que Manuel Gusmão – pai do líder independentista Xanana Gusmão – estava vivo e esperando por seu filho. Àquela altura, o mundo achava que o velho Gusmão havia sido assassinado. “Nós víamos na CNN a notícia de que ele tinha morrido e eu pensava: é melhor que acreditem nisso. Mas a notícia da morte do seu Manuel, como diria meu compatriota Mark Twain, é altamente exagerada”, disse. Com o mesmo bom humor, e uma desculpável blasfêmia, ela contou ainda que levou um primo de Xanana para o prédio da ONU no auge da violência do dia 10. “Eu o levei no carro do convento, e no meio do caminho demos com uma barreira militar. Fizeram sinal para eu parar, mas desobedeci. Eles atiraram na gente. Ainda bem que eram ruins de pontaria. Eu fugi e dirigi como o diabo”, disse irmã Marlene.

A chegada a Díli foi o mais complicado. Não apenas para as tropas inglesas e australianas que desembarcaram primeiro, mas também para o pessoal de apoio da Unamet (Missão de Assistência das Nações Unidas ao Timor Leste) e as dezenas de jornalistas que pegam carona nesta invasão. A recepção hostil das tropas do Exército indonésio, e de seus protegidos milicianos anti-independência, chegou ao ponto crítico quando religiosos, civis e dois jornalistas foram mortos, a despeito da suposta proteção que deveriam ter. Depois que o repórter holandês Sander Thoenes foi assassinado por soldados indonésios, às barbas da Interfet, os vôos da Força Aérea australiana para jornalistas foram suspensos. Mas membros da Unamet possibilitavam ainda o transporte extemporâneo para a imprensa. ISTOÉ entrou em Díli no sábado 25, com a ajuda de membros de uma equipe americana.

Terra arrasada – A avenida Comoro, que sai do aeroporto e vai ao centro da cidade, passa por um dos subúrbios que, até a terça-feira 28, ainda eram considerados zona de extremo perigo e território controlado por raivosos soldados indonésios e milicianos. O percurso na avenida Comoro, que deveria durar normalmente cerca de 20 minutos, levou quase uma hora devido ao intenso trânsito de veículos militares e de transporte de alimentos da operação humanitária. A paisagem é a de terra arrasada. Mesmo a visão deprimente dos escombros de casebres e da infra-estrutura na Comoro não consegue diminuir o impacto do que se encontra na capital pela rua Américo Thomaz. A carcaça queimada dos escritórios Pelni é o primeiro monumento à destruição sistemática de uma cidade que nunca foi famosa por sua beleza. Em seguida, a antiga hospedagem Wisma Tauiq – uma das preferidas por mochileiros que antes se aventuravam pelo Timor – lembra o trabalho arquitetônico dos primeiros dois porquinhos da historinha infantil. O lobão, no caso, já havia passado por lá. Até na quarta-feira 29, o fogo queimou o lugar.

A fogueira bem que poderia servir de chama eterna ao medonho Monumento da Integração, erguido pela Indonésia como prova de seu domínio. Acima de um pedestal está a figura de um nativo, paramentado com roupas típicas, levando numa das mãos uma bandeira em trapos e na outra um machete como aqueles que foram usados para mutilar e matar cerca de 30 mil pessoas e exilar outras 300 mil em menos de três semanas. Sua expressão é apropriadamente a de um psicopata em acesso de fúria. A estátua, diga-se, não sofreu o vandalismo impingido ao quase vizinho Hotel Makhota Plaza. Este era um dos endereços preferidos, no passado, dos turistas que exigiam conforto na paupérrima Díli. O prédio foi queimado e em seu saguão restaram apenas excrementos humanos e detritos daquilo que os soldados indonésios não conseguiram carregar às pressas em sua partida. O estacionamento nos fundos do Makhota serviu de acampamento para jornalistas de tevê, pessoal da Unamet; e também acomodou a barraca de ISTOÉ por quatro dias.

Mais de dois terços da cidade foram destruídos desde o dia 1º de setembro. É quase impossível determinar qual avenida, rua ou quarteirão tenha sido mais atingido. Talvez o epicentro do furacão genocida que demoliu a cidade seja a antiga área de comércio chinês. Até 1975, Díli tinha uma população de quase dois mil chineses. A maioria fugiu depois da invasão indonésia, cansada de perseguição xenofóbica, em que era proibido o ensino às crianças de outro idioma além do indonésio. Grande parte dos menores de 24 anos não fala sequer o português. Os chineses que insistiram em permanecer pagaram caro por essa renitência. A área chinesa era, na verdade, uma pitoresca vila portuguesa, com suas construções de arcos e pilares, pintadas de cor-de-rosa e creme. Hoje as cores são o negro e o cinza dos restos carbonizados. As mercadorias que eram expostas à beira da avenida Sada Bandeira estão agora nas bagagens de soldados.

Paz de cemitério – É surpreendente como o Exército indonésio e os milicianos conseguiram tal nível de destruição sem o emprego de bombardeio aéreo ou de peças de artilharia pesada. Os ataques foram feitos à base de facão, tiros, fósforos e muita gasolina. “Na segunda-feira 13 de setembro, minha tia, minha irmã e eu estávamos escondidos atrás do prédio da Câmara de Comércio Chinesa”, conta Orlando Gomes, 30 anos, que viveu o auge do terror em Díli. “Um oficial da Kopassus (Komando Pasukan Khusu – comando de forças especiais indonésias) chegou junto com dois SGIs (Satuan Gagasan Intelijen – o serviço de inteligência) que eu conhecia. Eles mandaram um grupo de timorenses buscar mais gasolina na Polda (delegacia de polícia) para poder queimar mais o prédio. Nós demos a volta pelas ruínas das casas, até a rua de trás. Ficamos escondidos numa casa bem queimada. À noite, descemos a rua do cemitério Santa Cruz. Ficamos escondidos três dias, sem água nem comida, até conseguirmos fugir para as montanhas”, lembra Orlando. Entre os túmulos e mortos, a família Gomes encontrou refúgio no local que foi palco de um massacre de civis timorenses pelo Exército indonésio em 1991. Para os indonésios, paz é só a dos cemitérios.

A participação das tropas regulares indonésias na queima do Timor Leste é fato comprovado por documentos cuidadosamente anotados pela SGI. Isso joga por terra a teoria de que a barbárie foi obra de milicianos isolados. “Que ninguém se engane: milicianos são os soldados indonésios”, declarou peremptório o general-de-divisão australiano Peter Cosgrove, comandante das operações da Interfet, numa das entrevistas coletivas que deu no Hotel Turismo. Este local foi o QG indonésio até o dia 23. Depois seria transformado em centro de operações das forças aliadas e da ONU. Este foi um dos únicos edifícios poupados pelos indonésios, que queimaram até o quartel principal que durante anos abrigara o grosso de suas tropas. Dentro do Hotel Turismo foram encontrados fichários da SGI relatando desde prisões ilegais até detalhes de torturas. “Numa das fichas eles falavam das vantagens do método de se jogar uma cobra na cabeça dos interrogados”, disse a ISTOÉ o major australiano Dan Skiner.

Foi para este local que correram, na segunda-feira, vários jornalistas que estavam hospedados num convento. O serviço de inteligência da Interfet havia levantado os planos de ataque das milícias ao convento para matar os odiados repórteres. Um comando foi destacado para o local e helicópteros sobrevoraram durante a noite a região. A demonstração de força deu resultado. Na terça-feira 28, as ruas estavam bem mais limpas. Os refugiados acampados à beira do mar haviam sido transferidos para o estádio esportivo e os detritos na cidade começavam a desaparecer. O garoto Abel e sua mãe foram “adotados” por seus salvadores da Infantaria Motorizada. Mas a segurança deverá demorar muito para chegar. A nação, recém-nascida, ainda está na incubadeira. Naquele fim de tarde, saindo do Timor Loro Sae a bordo de um Hércules C-130, ainda era possível ver as marcas da barbárie. Do alto se via Díli arder.