Audacioso, polêmico e irreverente, com um temperamento explosivo e fama de brigão, o italiano Pietro Maria Bardi foi dono de uma vitalidade incomum, desdobrada em 99 anos de existência nas diversas atividades de historiador e crítico de arte, marchand, escritor, jornalista e diretor de museu. Bardi morreu na madrugada da sexta-feira 1º em consequência de falência múltipla dos órgãos e acidente vascular cerebral isquêmico.

No dia 20 ou 21 – como hesitava o próprio nos últimos tempos – de fevereiro de 2000, o “professor”, como era chamado, completaria 100 anos. Há três, no entanto, ele mal conseguia falar e tinha dias em que não reconhecia nem os amigos mais próximos. Seu estado foi se agravando em 1992, ano da morte da sua mulher, a arquiteta Lina Bo Bardi, que projetou o Museu de Arte de São Paulo, o Masp, que abriga o mais importante acervo de arte ocidental da América Latina, com quatro mil obras avaliadas em US$ 1,5 bilhão, e que ele dirigiu por mais de quatro décadas.

Naquele ano, Bardi quase conseguiu realizar um dos seus sonhos – o de morrer trabalhando, escrevendo sobre a sua maior e generosa criação. Na ocasião, revisava os originais do último dos 50 livros que escreveu, História do Masp, de 1946 a 1990, quando sofreu um rompimento da aorta. Ele se encontrava na sua sala de diretor honorário do museu que ajudou a fundar em 1947 em parceria com outro aventureiro, o jornalista e magnata Assis Chateaubriand, o todo-poderoso dono dos Diários e Emissoras Associados, o maior império editorial e radiofônico brasileiro dos anos 30 e 40.

Ambos se conheceram em Roma, apresentados pelo então embaixador Pedro de Barros. Em seguida, Bardi e Lina foram convidados a trazer uma exposição de arte italiana para o Rio de Janeiro, onde o casal aportou em 1946 a bordo do navio Almirante Jaceguai. Acabaram ficando no Brasil. O encontro de Chateaubriand e Bardi marcou o surgimento de uma dupla mitológica no cenário artístico brasileiro, com casos lendários de malandragem na aquisição do rico acervo do Masp. Respaldado pelo prestígio financeiro do empresário e pelo seu próprio e apuradíssimo faro de expert em arte, Bardi, já naturalizado brasileiro, voltou a uma Europa arrasada no pós-guerra para garimpar obras que começaram a rechear a nascente pinacoteca do Museu. De 1947 a 1953, comprou preciosidades a preços baixíssimos, como todos os 73 bronzes de uma série do escultor francês Degas, arrematados por US$ 45 mil – hoje, apenas uma das peças, a Bailarina, vale US$ 400 mil –, além das telas O estudante, de Van Gogh, e O conde-duque de Olivares, de Velásquez, adquiridas por US$ 40 mil cada uma e atualmente avaliadas em US$ 30 milhões.

A certa altura da empreitada artística, com 101 obras-primas – entre elas, a tela Ressurreição, de Rafael, avaliada em US$ 2 milhões – compradas sem lastro, a audaciosa dupla acumulava uma dívida de US$ 4 milhões, que acabou sendo avalizada por um empréstimo obtido por Chateaubriand com o banqueiro americano David Rockfeller. O empréstimo jamais foi pago. A dívida foi nacionalizada e transferida para a Caixa Econômica Federal. Com a inflação, desvalorizou e, na época do governo Médici, foi anistiada pelo então ministro da Educação Jarbas Passarinho e paga com o resultado de uma das apostas da Loteria Federal. Artimanhas do gênero ajudaram Bardi a compor um valioso acervo.

Mas ele não limitou o museu a ser apenas um repositório de obras de arte. Junto a Lina Bo abriu o Masp às mais variadas manifestações artísticas. Fábio Magalhães, que foi conservador em chefe do Masp, de 1990 a 1995, lembra como Bardi estava atento à diversificação. “Ele desenvolveu o conceito de museu vivo.”
A inquietude ele trouxe da sua Itália natal. Pietro Maria Bardi nasceu junto com o século XX, em La Spezia, uma pequena cidade do golfo de Gênova, na Ligúria. Só chegou até o terceiro ano primário, que repetiu três vezes. “Sou o mais completo e puro autodidata que existe no mundo”, dizia o “professor”, título cunhado por Chateubriand.

Convertido ao jornalismo, “um vício” que cultivou até os 92 anos, com uma página semanal em istoé, ele foi cronista e redator de várias publicações italianas. Polêmico, foi acusado várias vezes de comprar obras falsas ou usar o Masp como um balcão de negócios. Seu mais famoso desafeto foi o filho do dono dos Diários Associados, Gilberto Chateaubriand, que o acusou várias vezes de atribuir autenticidade a um grande número de quadros falsos e de conciliar o cargo de diretor de museu com a profissão de marchand. Bardi nunca recebeu remuneração pelo seu cargo, que exercia com garra. Num de seus atos intempestivos, escreveu a palavra merda em vermelho como protesto às pichações na fachada do museu.

Bardi costumava acordar às 5h. Durante 44 anos chegava pontualmente às 8h no prédio do Masp, situado na avenida Paulista. “Não bebo, não fumo e não sei o que é novela.
Meu segredo é trabalhar sempre e não dar importância aos invejosos, vero?”, dizia, dando a receita de sua longevidade.