Personalidades da política brasileira que conviveram com o jornalista e escritor Mino Carta à época da ditadura militar acostumaram-se a ouvi-lo dizer: “Ainda vou escrever um livro chamado ‘O Brasil’.” Repetia a frase à medida que no País se repetiam também fatos relevantes a apontar a desigualdade social e os desmandos do regime. Também as redações habituaram-se a essa fala. Pois bem, “O Brasil” de Mino Carta (editora Record) acaba de desembarcar nas livrarias. Trata-se, na verdade, de dois livros em um – charada proposta ao gosto e estilo machadiano: “O Brasil” guarda uma obra factual e outra de ficção, mas há muitas franjas de realidade naquela que se apresenta ficcional. Daí se desenvolve o enredo, uma tecida com a outra, enquanto o memorialista alerta o leitor sobre a inevitabilidade de obedecer cegamente ao curso da memória. Cegamente? Como se disse, há no livro o sopro da ironia de Machado de Assis.

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REPRESSÃO
Brasil, 1968: Mino Carta (abaixo) cobriu o vaivém do
regime militar até a redemocratização, 17 anos depois

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Mino Carta cobriu como jornalista diversos momentos da ditadura, sempre posicionando-se contra ela – ditadura, aliás, que em “O Brasil” ele opta por qualificar não de “militar”, mas de um “estamento”. Fica claro em seu livro que essa é uma de suas concordâncias com o jurista e sociólogo Raymundo Faoro, autor dos clássicos “Os Donos do Poder” (apresenta a metodologia de Max Weber ao País) e “A Pirâmide e o Trapézio” (leitura weberiana de Machado). Como profissional, Mino foi um dos interlocutores do general Golbery do Couto e Silva – arquiteto do golpe de 1964 e posteriormente mago ou bruxo de sua “distensão lenta, gradual e segura” – e acompanhou o vaivém da “redemocratização”: o assassínio do jornalista Vladimir Herzog pela repressão, a tumultuada sucessão no Planalto do general Ernesto Geisel pelo general João Figueiredo, os atentados à OAB e ao Rio Centro, as primeiras greves lideradas pelo então sindicalista e hoje ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.

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Golbery é bem tratado no livro. Outras figuras da ditadura são retratadas com dureza. Para Mino, o general Hugo possuía “feições simiescas que se adaptavam à perfeição ao resto da figura e ao seu andar, de pernas curtas e extraordinariamente tortas”; o ex-ministro Armando Falcão era dono de um olhar traduzido por “órbitas abissais e lá no fundo se instalam dois ovos fritos”. Fora da quadra política, “O Brasil” do memorialista passeia na São Paulo de quatro décadas atrás, dos bairros operários da Mooca e do Brás ao circuito dos notívagos na região central onde pontuavam o restaurante Gigetto e as boates Tonton Macoute e Scarabocchio. Não há saudosismo no autor, existe sim a crítica, e uma ponta de melancolia, pelo fato de a cidade ter crescido desordenadamente. Da política nacional à geografia paulistana, “O Brasil” é sobretudo um livro de olhar sociológico. E dessa sociologia vem a definição de Mino Carta: “Convenço-me de que, de todas as desgraças que se abateram sobre o Brasil, a mais grave e decisiva são três séculos e meio de escravidão (…).”

Fotos: Agência Estado; Apu Gomes/Folhapress