Dois meses depois de começar um novo mandato, o presidente Fernando Henrique Cardoso finalmente terminou uma semana com bons motivos para comemoração. Uma operação de guerra montada pelo Palácio do Planalto conseguiu desarmar três bombas no campo minado em que se transformou seu segundo reinado. Ao mesmo tempo que a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado dava na sexta-feira 26 o sinal verde para a nova diretoria do Banco Central e uma blitz de fiscais do BC conseguia segurar a cotação do dólar, Fernando Henrique prometia abrir os cofres e acertava com 26 dos 27 governadores do País uma agenda para aliviar as contas estaduais. Nesses tempos de arrocho financeiro, toda essa generosidade presidencial agradou a aliados e também à oposição. O governador petista do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, mesmo tendo ensaiado um bate-boca com o presidente durante a reunião na Granja do Torto, ficou satisfeito com os resultados. "Ainda estamos longe de conclusões, mas criamos um clima de entendimento", elogiou Dutra, que, com seu comportamento impetuoso, acabou sendo uma das estrelas do encontro.

O desempenho de Dutra quase pôs a perder o script preparado pelo Planalto. Desde a noite da quinta-feira 25, o presidente tinha um mapa completo das reivindicações de cada um dos governadores. Depois de ouvir durante o dia os pedidos de 18 deles, o ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, ajudou FHC a preparar o discurso e as propostas que foram apresentadas no encontro. Mesmo tendo na ponta da língua o que os governadores queriam ouvir, com ofertas capazes de aliviar o caixa dos Estados, o presidente foi atropelado pelo governador gaúcho, que reclamou contra perseguições a Minas Gerais e ao Rio Grande do Sul. "Estamos sofrendo retaliações", protestou Dutra. "Estou apenas cumprindo a lei. Se usar a palavra retaliação, estará me agredindo", retrucou Fernando Henrique. Dutra não recuou e acabou premiado. Terá uma audiência com o presidente na terça-feira 2 para discutir o bloqueio de verbas a seu Estado e a Minas pela interrupção do pagamento das dívidas com a União. Quer levar junto o governador mineiro, Itamar Franco, o único ausente da reunião do Torto. "Desde que o presidente estabeleça pontos que possam ser discutidos, é evidente que Itamar participará da reunião", aposta o senador Roberto Requião (PMDB-PR), que estava ao lado do governador quando ele foi informado sobre os resultados da conversa coletiva com Fernando Henrique.

O que o presidente prometeu

1 Ajudar a formar um fundo de pensão para os servidores dos Estados
2 Revisão da Lei Kandir, que isenta as exportações de ICMS e diminui a arrecadação estadual
3 Estabelecer linhas de crédito para os Estados se ajustarem à Lei Camata, que limita os gastos com funcionalismo a 60% da receita
4 Enviar ao Congresso projeto que fixe regras de utilização de recursos judiciais pelos Estados
5 Rever o pacto Federativo, regulando a competência entre União, Estados e municípios
6 Estabelecer formas legais de parcelar os precatórios em diversos níveis da administração pública

Depois das quase seis horas de reunião, com direito a pausa para uma suculenta feijoada, Fernando Henrique voltou satisfeito para o Palácio da Alvorada. "Foi excelente, deu tudo certo e avançamos muito", comentou um exultante FHC. "Foi uma doce sexta-feira, a melhor do ano", vibravam assessores palacianos ao fazer no início da noite um balanço sobre as vitórias governistas durante o dia. Para chegar a esse resultado, Fernando Henrique teve de dar uma guinada radical em sua estratégia ao longo da semana. Antes, estava convencido de que havia conseguido isolar Itamar Franco e assegurado, com paparicos e promessas de ajuda, a participação de pelo menos cinco dos sete governadores oposicionistas na reunião. De salto alto, resolveu tripudiar sobre o desafeto Itamar Franco. Aproveitou uma solenidade no município capixaba de Vila Velha para o pontapé inicial do Programa Nacional de Informática na Educação e deu um troco nas estocadas de Itamar. "Tem muita gente cuja corda na mão é de Silvério dos Reis, não de Tiradentes. Tem gente que faz demagogia e enforca o povo", disparou Fernando Henrique. Foi um tiro pela culatra. O ataque ao governador mineiro irritou tanto as oposições como os aliados governistas. "O presidente foi inoportuno e contribuiu para transformar o jogo em pelada de várzea", protestou o líder do PMDB na Câmara, deputado Geddel Vieira Lima (BA). "Isso só atrapalha", endossou o líder tucano Aécio Neves. O próprio Fernando Henrique sentiu que foi longe demais. Deixou isso claro em conversas com ministros e parlamentares. "Logo depois que falei, arrependi-me", lamentou.

Como a alfinetada em Itamar repercutiu mal, FHC resolveu mudar de tática e passou a pregar o entendimento. Inaugurou o novo estilo durante a inauguração na quinta-feira 25 de uma fábrica de painéis de madeira no município paranaense de Piên. Ao lado do governador do Paraná, Jaime Lerner, o presidente fez um discurso conciliador. "Olhando lá para a frente, para a bandeira do Brasil, devemos trazer, do nosso coração e das nossas mãos, uma só bandeira, branca, de paz, de tranquilidade e de confiança." Com essa nova postura, Fernando Henrique conseguiu arrefecer a pressão dos governadores em favor de uma nova renegociação das dívidas estaduais. Mais do que os afagos presidenciais, o que agradou aos governadores foi o preço que o Planalto topou pagar para chegar ao entendimento. Entre os sete pontos acertados, dois foram especialmente comemorados. O governo federal comprometeu-se a dar uma mãozinha financeira aos Estados na criação de fundos de previdência para o pagamento das aposentadorias dos servidores estaduais, o que vai aliviar as folhas de pagamento. "Esses fundos vão abrir o caminho para que os Estados voltem a investir, contribuindo para a retomada do emprego e do desenvolvimento", diz Jaime Lerner, o pai da idéia. O outro agrado foi a promessa de revisão do cálculo da receita líquida dos Estados, o que, na prática, significará a redução da parcela destinada ao pagamento das dívidas com a União. "Foi melhor do que a gente esperava. O desafio agora é tornar tudo isso realidade", festejou o governador do Acre, o petista Jorge Viana.

 

Às apostas, senhores

O operador entrou no jogo e não esperou sequer a autorização da mesa. Armínio Fraga Neto assumiu a presidência do Banco Central na terça-feira 23, quando orientou a intervenção oficial no mercado de câmbio para segurar o dólar e evitar uma nova onda de especulação como a que derrubou seu antecessor, Francisco Lopes, na última sexta-feira de janeiro. Foi a primeira ação concreta do BC desde a mudança do regime cambial, há seis semanas, e o sinal de que o ex-funcionário do megaespeculador George Soros não quer dar liberdade total aos seus antigos parceiros de mercado financeiro. Com reservas internacionais em US$ 35,7 bilhões, Fraga sabe que não tem muitas fichas para apostar errado. Nas primeiras intervenções, a mesa de câmbio do BC foi cautelosa e vendeu menos de US$ 100 milhões, cifra que nem de longe lembra os US$ 50 bilhões gastos no ano passado. O resultado também foi modesto: a cotação do dólar não explodiu, mas ficou insistentemente acima dos R$ 2.

Cautela e modéstia também foram as armas que Fraga tentou usar para enfrentar as especulações sobre sua correção ética durante a sabatina de seis horas e meia a que foi submetido na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, na sexta-feira 26. No lado de fora, a CUT o acusava de ser a raposa solta no galinheiro. Os senadores da oposição o comparavam a um "vampiro sanguinolento" e ao "gênio do mal", Fraga procurou manter a calma. Mas o debate com o senador Roberto Freire (PPS-PE) o tirou do sério. "Me sinto ofendido com essas insinuações sobre promiscuidade e vejo que há uma tendência ao pré-julgamento a partir de rótulos", disse um irritado candidato a presidente do BC, depois de ouvir que não tinha reputação ilibada nem domínio técnico para assumir o cargo. Ao seu lado, o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), procurava contê-lo e recomendava que não perdesse tempo com as acusações. Não era preciso. O governo garantiu a aprovação de Fraga – e de todos os outros cinco diretores indicados – por 21 votos a seis. Pedro Simon (PMDB-RS) foi o único integrante da base governista a reprovar Fraga. "Foi um voto de consciência. Ele não é o homem para o BC", justificou o senador, preocupado com as ligações entre Fraga e o setor privado.

Para não mostrar complacência desde logo, o virtual presidente do BC autorizou a formação de uma tropa de choque constituída por 12 fiscais que invadiram as mesas de câmbio de vários bancos em São Paulo, entre os quais CCF, Bank of America, BankBoston, Matrix e CS First Boston Garantia. Cada operação foi atentamente analisada e a especulação desenfreada daquela "sexta-feira negra" em janeiro não foi repetida. Os bancos chiaram. "É como se alguém visitasse sua casa para ver a cozinha", reclamou o operador de uma instituição estrangeira, constrangido pela ação dos fiscais. A rigidez, aliás, virou palavra de ordem no BC. A política de juros altos não vai mudar no primeiro semestre e o Fundo Monetário Internacional (FMI) definirá a meta de inflação para o ano. Já é certo que, no último trimestre, a taxa média mensal terá de ser inferior a 0,6%, o que pode exigir uma recessão severa. "A responsabilidade política pela indicação de Armínio Fraga é do presidente. No governo Collor, já se colocou alguém do mercado (Ibrahim Éris) no Banco Central e isso não foi solução", lembrou o senador Jader Barbalho (PA), líder do PMDB, deixando claro que os aliados políticos dos tucanos não estão dispostos a dividir o ônus de um possível fracasso.

Wladimir Gramacho