Valéria e Vitor da Silva estão apaixonados há pelo menos cinco anos. Jovens de 21 anos, os dois vislumbram o Brasil e o mundo a partir de uma cidadezinha chamada Girau do Ponciano, na região central de Alagoas, distante 30 quilômetros do rio São Francisco e da divisa com Sergipe. São professores diplomados e, para completar o cardápio de afinidades, formavam até o ano passado um par de vítimas do amor. O amor pela educação. O trabalho nobre de educar em escolas municipais da pequena Girau valia R$ 78 para cada um. Longas caminhadas entre nuvens de poeira, planos de aula detalhados, exercícios, provas, alunos sedentos de tudo. E pouco mais de meio salário mínimo ao final da jornada. A virada veio em fevereiro do ano passado graças aos efeitos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, o Fundef, também conhecido como Fundão. Criado pela Lei nº 9.424/96, esse gigantesco pacote de recursos é recheado com 15% da arrecadação de Estados e municípios com ICMS, IPI, Fundo de Participação dos Municípios (FPM), Fundo de Participação dos Estados (FPE) e Fundo de Ressarcimento de Exportações, a Lei Kandir. O ICMS responde por 63,8% dos recursos do fundo. Tudo precisa ser canalizado para o ensino fundamental, o antigo primeiro grau. Na estréia, em 1998, o programa movimentou R$ 13,3 bilhões. Neste ano, serão R$ 13,8 bilhões. No interior de Estados do Norte e do Nordeste o sacolejo provocado pelo Fundão foi forte. Professores da simpática e calorenta Girau do Ponciano, por exemplo, registraram um aumento médio de 280%, recorde no País. Valéria e Vitor passaram a receber R$ 280 cada um. É evidente que educadores merecem salários ainda melhores, mas uma conta simples ajuda a medir a dimensão do impacto ocorrido, por exemplo, na vida desse casal. Basta esperar a véspera do próximo pagamento e multiplicar o salário por 3,5897.

Depois de um ano e meio de Fundef, essa turma disposta a dar algum sentido à vida de milhares de moleques carentes saltou de indignidades entre R$ 19 e R$ 78 mensais para salários entre R$ 250 e R$ 800. Eles entraram na faixa dos colegas “do Sul”. Não é algo capaz de corar de inveja um motorista do MEC com alguns anos de trabalho ou mesmo um camelô de São Paulo, mas representa uma revolução em lugares onde a sobrevivência, para a maioria, costuma virar uma pequena aventura de terror quando não existe vínculo com o poder público. Professoras como Rita de Cássia Costa Silva (42 anos e 22 de magistério) e Josefa Tenório (45 anos e 30 de sala de aula), de Boca da Mata, no Alagoas, engrossam o contingente transformado em classe média do interior do Nordeste com renda de proletário do Sul. Deve ser mesmo difícil esquecer algumas coisas do passado. Ainda hoje, o semblante de Rita se fecha quando o assunto chega ao seu histórico financeiro. “O mais difícil não era ganhar R$ 40 por mês”, diz, numa sala mirrada da Escola Municipal Major José Tenório de Albuquerque Lins, em Boca da Mata, no Alagoas. “Humilhante era receber R$ 40, fazer um carnê de R$ 20 e passar vergonha no comércio com os atrasos de até cinco meses no pagamento.”

“Fraqueza” – Quando o clima permite, a Triunfo, única grande usina de álcool da região, garante alguns trocados para famílias inteiras na colheita, entre novembro e fevereiro. Por semana, R$ 20 no máximo, para pai, mãe e filhos capazes de aguentar o tranco. Muitos dos alunos acumulam faltas no período, mas a necessidade de comer fala mais alto. Fora dessa época de trabalho, é um arrocho só. Rita de Cássia, agora na “classe média”, passou a ganhar R$ 459 mensais e rea-lizou um sonho antigo: um plano de saúde, a prestações de R$ 55. Dona Josefa, sua colega, tem uma filha de 13, um filho de dez e um marido paralítico. Em março do ano passado, abriu o holerite e levou a mão ao peito. “Me deu uma fraqueza. Fui correndo para ver se era verdade.” Feitas as contas, tinha pulado de R$ 60 para R$ 768. Seu primeiro ano com salário novo está concretizado na casa de sala e três quartos, exibida com orgulho mesmo antes do acabamento.

Magistério é sacerdócio e muita gente leva a máxima às últimas consequências. Tome-se o caso da Escola Municipal Francisco Monteiro Filho, em São Jerônimo, lugarejo com status de distrito de Guaiúba, no Ceará, por conta de uma certa dose de otimismo de seus 800 habitantes. A última das quatro salas toscas da escola é separada do restante do bloco educacional por uma prosaica birosca, a bodega do Martoni. O proprietário fez o ponto antes de a antiga oficina ser transformada em escola, há 18 anos. Não há água encanada, o açude local vive seco e, quando a coisa aperta, a comunidade arruma um jeito – o nordestino sempre arruma um jeito. Anos atrás, alguém furou o cano de ligação do açude aberto na região de Acarape do Meio ao centro de Guaiúba e o líquido precioso saltou sobre a rapaziada. Instaurou-se então um remenda-quebra-remenda-quebra-remenda-quebra até a prefeitura decidir instalar uma torneira no duto, nas proximidades do povoado. A partir daí, o cano parou de quebrar.

Roberto dos Santos, 40 anos, um dos nove heróis dos alunos do Monteiro Filho, enfrenta alguns quilômetros de estrada de terra até a escola com um pouco mais de disposição. No dia do pagamento, o professor coloca R$ 170 nas mãos da ex-mulher para ajudar no sustento dos três filhos. Pode não ser uma fortuna, mas o acordo foi civilizado, arrematado sem pressões na Justiça e, feitas as contas, Santos dedica à causa nobre mais de 46% de seus R$ 367 mensais. Esse percentual deixaria arrepiado muito ex-marido bem pago.

Empresta um aí? – Em Boa Viagem, sertão central do Ceará, a diretora Luiza Mendes da Silva, 37 anos, está orgulhosa da Escola Municipal José Adauto Sales. São 266 alunos, divididos em cinco salas e comandados por nove professoras. Na década de 70, quando entrou pela primeira vez em uma sala de aula para ocupar a cadeira do mestre, professor com o curso normal completo era artigo raro. A menina esperta da oitava série foi então convocada para ensinar os mais novos e aceitou o desafio. Até fevereiro de 1998, as mais de duas décadas de trabalho eram premiadas com R$ 45 mensais, transformados hoje em um salário de R$ 550. “Dia desses, um conhecido, ao me ver passar, falou alto para um amigo: ‘Pede dinheiro emprestado aos professores porque agora eles estão por cima’”, conta ela, ao lado de sua Honda Titã 125 de R$ 3,2 mil, um dos frutos da nova fase. “Eu respondi: ‘Olha aqui, eu trabalhei 18 anos de graça para chegar lá’”, completa.

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A melhoria do salário não foi o único benefício. A escola passou por reformas e, na avaliação da diretora, a qualidade de ensino também foi aprimorada. “Uma colega, na sala de aula, falava Ronalbinho (Ronaldinho), suqui (suco) e burracha com os alunos. Dava dor no coração. Isso acabou.” Outro sinal de mudança de status pode ser visto todas as tardes estacionado em frente à escola, na entrada da cidade. É o Chevette 88 das quatro irmãs Nepomuceno, comprado no início do ano. As 200 horas mensais do expediente integral na rede municipal valem R$ 380 mensais para Anaclécia, Rosângela, Maria José e Hosana.

O combustível financeiro recebido pelos 910 docentes de Boa Viagem começa a despertar interesses. Existem até os aptos a enxergar nas professorinhas investimentos de longo prazo, mais consolidados. Elas viraram os grandes partidos da cidade. “O salário das moças foi para o alto e muita gente realmente pensa nisso”, admite Gilberto Souza da Silva, um dos taxistas do ponto central da cidade de Redenção, também no Cea-rá. Maria Auxiliadora Gomes, a Cilinha, da Escola Neide Tinoco, no distrito de Itapaí, confirma tudo, ao lado da colega Antonia Marliene Thomás. “Como sou solteira, as investidas são maiores”, explica, do alto de seus R$ 750 líquidos mensais. Antes, o salário era três vezes e meia menor.

Tribunais de conta e conselhos de fiscalização, instalados em 80% dos municípios, têm trabalhado pesado para evitar fraudes. Mas os repasses mensais de dinheiro do Fundef vêm produzindo algumas rasuras incômodas na cartilha do Fundef. (Leia quadro com as principais denúncias). O valor total do fundo é distribuído a cada Estado e município, em contas individuais, na proporção do número de alunos matriculados no ensino fundamental (primeira à oitava série). Cada Estado ou município recebe R$ 315 vezes o número de alunos matriculados no ensino fundamental, apurado pelo censo escolar anual. Sessenta por cento do dinheiro deve ser gasto em salário dos professores da ativa. Até 2001, uma parcela poderá ser usada na capacitação de professores leigos, isto é, os que ainda não possuem o curso normal. Os outros 40% vão para a manutenção e desenvolvimento do ensino.

“Economistas assexuados”– Os recursos são repassados dentro de cada Estado. Neste ano, o Fundef irá movimentar R$ 13,8 bilhões (R$ 8,9 bilhões dos governos estaduais, R$ 4,3 bilhões dos municípios e R$ 609 milhões da União). Quando um estado ou município não consegue os R$ 315, a União completa o bolo. Neste ano, oito Estados receberão complementos para repassar a seus municípios. Na avaliação de muitos educadores e políticos, a média correta neste ano deveria ser de R$ 409. Isso obrigaria o governo federal a promover repasses para um número maior de Estados. “O governo, orientado por esses economistas assexuados ideologicamente, faz caixa à custa da qualidade de ensino”, ataca o deputado Ubiratan Aguiar (PSDB–CE), autor da Lei do Fundef. O ministro da Educação, Paulo Renato Souza, rebate as críticas. “O valor está correto pelas contas do Ministério”, disse a ISTOÉ. “Gostaria de ter R$ 1 mil por aluno. Ou R$ 2 mil. Mas existe o possível.”

O Fundão precisa ser fiscalizado com rigor para evitar retrocessos na caminhada de pessoas como Valéria, Vitor e Edna Menezes, educadora leiga, de uma pequena escola rural do povoado de Sítio Poço, em Girau do Ponciano. Em março passado, ela completou o primeiro ano de sua vida acima da barreira do salário mínimo. Tem 29 anos, seis filhos, a obrigação de segurar as pontas com os R$ 180 mensais nas baixas enfrentadas pelo marido agricultor. Está fazendo o normal, para entrar no plano de carreira e dar outro salto salarial. “É minha única saída”, conclui. Será uma professora com educação fundamental de professora. Junto com os alunos, sairá ganhando. Formados, Valéria e Vitor podem sonhar mais alto. O salto nos salários permitiu o casamento em 1998. E a chegada de Victoria, no último mês de fevereiro. A mãe promete não desgrudar da filha nos próximos anos, mas procura meios para cursar Pedagogia a partir do ano que vem. A educação é nobre demais para produzir vítimas e, além disso, é bom não duvidar de quem conseguiu viver com R$ 78 mensais.


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