Esta é a história de dois antropólogos que, ao escavar uma gruta à procura de ossos e instrumentos de ancestrais do homem que viveram há 100 milênios, encontraram evidências de um crime. No fundo da Boume Moula-Guercy, toca às margens do rio Rhone, ao norte de Marselha, havia sob metros de sedimento uma pilha com centenas de ossos, em sua maioria cervos. No meio deles, entretanto, havia 78 de humanos. Ou melhor, de homens de Neanderthal, espécie primitiva que habitou a Europa entre 125 mil e 35 mil anos atrás, quando desapareceu para dar lugar ao homem moderno que acabara de sair da África. Analisando esses ossos, os cientistas descobriram que eram de pelo menos seis indivíduos: dois adultos, dois adolescentes de 15 e 16 anos e duas crianças de seis e sete anos. Também notaram que os crânios estavam quebrados e tinham marcas do tipo que só poderia ser deixado pelo impacto de facas e martelos de pedra. Todos os ossos longos também estavam partidos. A língua de uma criança havia sido arrancada. Parecia que aqueles esqueletos tinham sido deliberadamente descarnados e seus ossos partidos para extrair o tutano. O veredicto não poderia ser outro: canibalismo, como destacam os cientistas na revista Science. “É uma evidência conclusiva de que alguns Neanderthais praticavam o canibalismo”, defende Tim White, da Universidade da Califórnia em Berkeley.

Moula-Guercy começou a ser escavada em 1991 pela equipe de Alban Defleur, do Laboratório de Antropologia de Marselha. Quando, em 1998, ele achou os ossos com traços de canibalismo, chamou White para estudá-los. “Defleur trata o sítio como se fosse a cena de um crime”, revela White.

O canibalismo era uma prática difundida entre os índios de quase todos os continentes. Não é novidade que as tribos encontradas pelos portugueses quando chegaram ao Brasil comiam seus inimigos. Já a hipótese de que os Neanderthais se alimentavam de seus semelhantes também não é nova. Foi levantada pela primeira vez há mais de um século, quando arqueólogos descobriram em 1890 ossos fraturados numa caverna da Croácia. Naquela oportunidade, a hipótese só não se confirmou porque a técnica empregada na retirada dos fósseis foi contestada. Ela poderia ter sido a responsável pela danificação dos ossos. Passados 100 anos, as técnicas hoje usadas são acima de qualquer suspeita.

É notável saber que o canibalismo não foi um costume limitado à espécie humana. Só não se sabe por que os Neanderthais o cometiam. Como os ossos foram achados ao lado de muitos outros de cervos, fica descartada a hipótese de que seus praticantes o fizeram como única forma de sobrevivência para não morrer de fome. Ao contrário, os indícios levam a crer que essa dieta especial fazia parte regular do cardápio dos primeiros habitantes da Europa.