Toda vez que o prêmio da Megasena fica acumulado o sonho de tornar-se um milionário volta a rondar os brasileiros. Aquela fortuna aparentemente inatingível passa a ser a saída imaginada pela maioria da população para fugir da crise, das prestações e contas a pagar no final do mês. Delírios e devaneios passam a povoar as mentes de cidadãos pobres, de classe média e – por que não? – também dos ricos. Não há quem deixe de revelar desejos excêntricos e extravagantes como contratar a Sharon Stone ou o Brad Pitt para um show privê. Pacatas donas de casa cogitam da hipótese de comprar o passe do jogador de futebol Raí, do São Paulo, para que ele jogue só “na área delas”. A chance de ganhar, no entanto, é muito remota. Se uma pessoa apostar R$ 600 mil, a possibilidade de acertar é de uma em 100. “A loteria é um imposto que a gente paga por ser idiota”, critica o sociólogo, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Álvaro Comin, que também fez a sua fezinha.

De qualquer forma, o sortudo vencedor terá um grande desafio pela frente. Mais do que saber administrar a fortuna, ele tem de saber administrar a cabeça. Com mais R$ 46 milhões no bolso – o valor acumulado da Megasena nas últimas oito semanas –, qualquer um pode pirar. “Não tem escapatória: se o sujeito não tiver estrutura psicológica, ele perde o dinheiro ou, no mínimo, os amigos”, prevê a psicanalista paulista Sandra Grostein. Para ela, ganhar muito dinheiro do dia para a noite pode gerar reações diversas, quase sempre inconscientes. A mais comum é a mudança de personalidade. “Ao tentar se adaptar a uma realidade diferente, a pessoa fica mascarada. Os menos equilibrados começam a jogar tudo fora.” A socialite Vera Loyola, a rainha das emergentes que enriqueceu comandando uma rede de padarias no Rio de Janeiro, ousa dar conselhos. “As pessoas têm de respeitar o dinheiro. Ele não aguenta desaforo. Se gastar e não repuser, pode ficar sem nada”, ensina. Vera jogou na Megasena “apenas alguns reaizinhos.” Se ganhar, ela diz que só com os juros do dinheiro ajudaria entidades de deficientes físicos e “os pobres que estão à minha volta, os empregados de casa e da empresa”. Não esqueceria, é claro, seu maior sonho no momento: ter um programa de televisão. “Ele seria feito numa grande padaria, num cenário maravilhoso. Ia ajudar o social, fazer entrevistas, brincar com o auditório, lançar cantores.”

Férias em Piripiri – Muita gente não tem, porém, a mínima noção do poder de R$ 46 milhões. O dinheiro daria para comprar 4.600 automóveis Fiat Uno, 460 apartamentos de três dormitórios em São Paulo e ainda alimentar 100 famílias de cinco pessoas com dois Big Mac, por dia, durante 26 anos. “Dá ainda para fazer 9,2 mil viagens de 30 dias pela Europa ou lotar 58 Maracanãs para assistir às partidas da Seleção Brasileira”, sugere o administrador de empresas Edgar Menezes, pesquisador do Programa de Administração de Varejo da Universidade de São Paulo. “Mas o cara pobre iria correndo comprar um apartamento do BNH”, acredita Laert Sarrumor, vocalista do grupo Língua de Trapo. Essa não é uma frase de efeito de artista. O piauiense de Piripiri Acecrino Holanda da Silva, 37 anos, garçom de uma das mais famosas boates de São Paulo, a Kilt, ganhou uma vez na quina e com os R$ 40 mil do prêmio (dividido entre outros colegas) fez exatamente isso. “Consegui o meu canto.” Ele joga desde os 13 anos e acha que tem muita sorte. Gasta pelo menos R$ 50 todas as semanas com apostas na Loto, Megasena e Loteria Esportiva. Acredita que vai ganhar novamente – um dia –, mas seus sonhos são simples. “Se acertasse agora, compraria uma casa boa e grande no meu bairro, a Bela Vista. Viajava para Piripiri e daria uma casinha de R$ 10 mil a R$ 20 mil para umas 20 pessoas de lá, entre parentes e amigos pobres.” Viagens aos Estados Unidos ou à Europa, nem pensar. “O que eu ia fazer lá? Isso não é lugar pra mim não.” Na opinião do sociólogo Álvaro Comin, esses desejos modestos das pessoas simples são previsíveis. “Quem vai querer viajar para a Europa se, antes de mais nada, tem de resolver suas carências básicas?”

Grande parte das pessoas também não se dá conta de que suas vidas passariam por grandes transformações. “Nem tenho idéia do que iria acontecer”, afirma Antônio Celestino Barbosa, 44 anos, analfabeto, pai de quatro filhos pequenos e ajudante-geral desempregado há dois meses. “Nem sei para quem pediria uma ajuda. Mas eu não iria perder o juízo não. Eu arrisquei uns trocadinhos no jogo porque estou passando necessidade.” A aposentada Ivone da Cruz de Camargo, 72 anos, que vive com R$ 600 por mês, acha que estaria “a salvo” entregando o dinheiro a dois netos, soldados da Guarda Metropolitana de São Paulo. “Eles iriam saber o que fazer.” Ivone não consegue quantificar o valor do prêmio. “Seria uma perua cheia de dinheiro?”, pergunta. Ela teme também pessoas ruins. “O povo que mexe com drogas pode querer vir pra cima da gente.” Já Laert Sarrumor alerta para o perigo com as ex-mulheres, o advogado, o contador e a sogra. “São os primeiros que vão querer roubar o dinheiro.”

Noitadas – A verdade é que muita gente já se deu mal ganhando muito dinheiro. Um dos casos mais famosos é o de Eduardo Varela, o Dudu da Loteca, que ficou milionário da noite para o dia, em 1972. Ele investiu apenas um décimo do que ganhou num hotel em Campos do Jordão (SP) e acabou falindo. O boiadeiro Miron Vieira de Souza, de Goiás, faturou 22 milhões de cruzeiros (hoje cerca de R$ 4 milhões), em 1976, e sua primeira providência foi comprar uma dentadura. Adquiriu terras e bois e passou por momentos difíceis quando começou a pagar banquetes e noitadas para os amigos. Depois se recuperou. “Aqueles que jogam buscam o prazer, entre eles o sexual. Com o dinheiro, vão atrás de tudo isso. Só que a riqueza resolve alguns problemas, mas provoca outros”, analisa a psicóloga Rosely Sayão. Nem todos vivem só em busca da luxúria. Há aqueles, inclusive, que manifestam desprendimento em relação ao dinheiro. O empresário e pizzaiolo paulista Afonso Renna, por exemplo, comprou, durante mais de três anos, inúmeros bilhetes da Loteria Federal vendidos por um de seus tios, já velhinho, que insistia em trabalhar. Nunca conferiu nenhum deles e agora os mantém guardados em uma caixa. Achava o tio pé-frio. “Todas as pessoas que eu conheço e têm muita grana são meio pancadas.” Se ganhar na Megasena, promete fazer “muita pizza”.

Com os R$ 46 milhões também é possível fazer boas ações, sem grandes prejuízos ao bolso. “Somente com 10% dessa quantia dá para manter 120 mil crianças, por ano, estudando no Projeto Acelera, que combate a repetência escolar”, propõe Viviane Senna, presidente do Instituto Ayrton Senna. Mudar o mundo, com muito dinheiro, também não é impossível, acredita o trotskista Valério Arcary, líder do PSTU, partido nanico de extrema esquerda. Ele compraria um apartamento, guardaria um pouco de dinheiro para a filha e depois “doa-ria o resto para fazer a revolução socialista e ensinar Marx para os jovens”. Programa de auditório na padaria, pizza para os amigos ou revolução para o povo, o sonho da Megasena tem pelo menos uma utilidade: é bom para exercitar a imaginação.