Para chegar em seu casebre no coração da Amazônia, dona Mimita viaja uma hora e meia pelo rio Jari, anda três quilômetros numa picada a céu aberto para contornar a cachoeira Santo Antônio e, por fim, gasta outra hora a bordo de uma voadeira, barco motorizado que desvia dos blocos de pedra espalhados pelo leito do rio. Aos 63 anos, Francisca de Souza Araújo sempre sobreviveu de vender e comer castanha do Brasil, mais conhecida por castanha-do-pará. Há três anos, sua receita caseira de biscoito amanteigado com castanha virou presença obrigatória nas merendas escolares do Amapá. Para produzir 1.700 quilos da iguaria ao ano, os moradores da reserva ecológica Iratapiru fundaram uma cooperativa. Hoje são 150 pessoas para recolher as castanhas na mata, quebrar uma a uma, preparar a massa e embalar os biscoitos. Dona Mimita, seus filhos, netos e outros integrantes da comunidade agora tomam aulas com seringueiros para produzir borracha durante a entressafra da castanha. Esperam assim ter dinheiro para colocar combustível no único carro que faz o transporte dos biscoitinhos e usar o restante para dividir entre as famílias, comprar comida e reformar as palafitas onde dormem em condições precárias.

Dona Mimita faz parte das chamadas populações tradicionais esparramadas pelos cinco milhões de quilômetros quadrados da Amazônia legal. Junto com índios, seringueiros, garimpeiros e migrantes de outros Estados, formam um grupo entre 15 milhões e 18 milhões de habitantes. Para esses brasileiros falta muita coisa. Mas a carência maior é de obras de infra-estrutura básica, que não provocam desmatamento nem exploração predatória dos recursos naturais. O problema é que atividades como a produção de biscoitos, borracha e subprodutos como o óleo de castanha não estão contempladas no ambicioso projeto de desenvolvimento para o País proposto por Fernando Henrique Cardoso para o período de 2000 a 2003. Pelo contrário. As recomendações do Plano Plurianual, o PPA, ou ainda Avança Brasil, que promete realizar 365 programas de desenvolvimento para gerar 8,5 milhões de empregos, são contrárias aos princípios fundamentais de preservação da mata. Pior. Menos de 0,5% do R$ 1,1 trilhão de recursos do PPA foi destinado ao meio ambiente. Os dados mais recentes, de agosto de 1997, indicam que 532 mil quilômetros quadrados de floresta foram dizimados pela ação conjunta de três fatores: desmatamento para instalação de pastos e latifúndios agrícolas, exploração madeireira e queimadas. É uma área quase do tamanho da França.

Os mais renomados especialistas em Amazônia são unânimes em afirmar que as diretrizes do governo para o meio ambiente equivalem a um desastre ecológico. O projeto de construir ou asfaltar três estradas, incentivar a agropecuária e implantar quatro hidrovias para escoar a produção de soja é frontalmente contrário às iniciativas de frear a destruição da Amazônia.

Emprego – Quando o assunto é geração de emprego, a situação fica ainda pior. Com o avanço da tecnologia, a produção de soja pode gerar cinco empregos, enquanto no extrativismo trabalham de 30 a 40 pessoas num mesmo pedaço de terra. Sem contar que os solos da floresta são arenosos e pobres para agricultura intensiva. Alarmados com a possibilidade de o PPA ser aprovado pelo Legislativo – com apoio da bancada ruralista do Congresso – 210 cientistas, economistas e pesquisadores reuniram-se dia e noite para apresentar alternativas e prioridades para promover o desenvolvimento social e econômico sem provocar degradação da floresta. Do congresso que aconteceu em Macapá (AM) entre 20 e 25 de agosto saiu um compêndio de tudo o que se sabe sobre espécies biológicas, desmatamento, exploração de madeira, queimadas, terras indígenas e ocupação humana nos nove Estados que compõem a Amazônia legal. O resultado é um mapa com as áreas prioritárias para preservação, proteção e pesquisa científica. Desde quarta-feira 29, eles estão disponíveis no site do Instituto Socioambiental (www.socioambiental.org), organização não-governamental que coordenou o seminário. “Finalmente temos informações consistentes para cobrar políticas públicas”, diz Adriana Gonçalves Moreira, presidente do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia–Ipam e doutora em ecologia pela Universidade de Harvard.

Não é preciso ser PhD em meio ambiente para notar as incoerências entre o Avança Brasil e as áreas de importância para preservação da floresta. Basta olhar os mapas. “O desafio do governo será conciliar as necessidades ecológicas e as propostas do PPA”, explica Bráulio Dias, diretor de biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente. Dias reconhece que o difícil será convencer outros ministérios da necessidade de reforma no PPA. O rastro de destruição na Amazônia não é de hoje nem do começo do governo FHC. Mas o ritmo de devastação tomou proporções cavalares com a expansão dos latifúndios em Mato Grosso, Pará e Maranhão. Só no ano passado a profusão de queimadas transformou 50 mil quilômetros quadrados de área verde em fumaça. Em média, 15 mil quilômetros quadrados pegam fogo todo ano. Some-se a isso os 13 mil quilômetros quadrados de desmatamentos e outros 11 mil a 15 mil quilômetros quadrados derrubados pelas madeireiras todo ano. Os sucessivos erros de políticas públicas agravam ainda mais a situação. “A Amazônia corre sério risco de perder grandes focos de riqueza biológica e florestal”, alerta o paraense Adalberto Veríssimo, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), e autor de um artigo sobre o tema que mereceu em abril uma capa na prestigiosa revista Nature. “Ninguém é louco de querer que a Amazônia vire um jardim botânico, mas pelos rumos do PPA o cenário é de destruição maciça promovida pelo dinheiro público”, assinala Veríssimo.

Por isso, o maior foco de críticas aos anseios de FHC está concentrado na abertura de estradas. Até porque estender tapetes de asfalto pela mata é um modelo que já deu mostras de sua ineficiência. Os principais eixos de desenvolvimento previstos no PPA são a recuperação do trecho paraense da rodovia que vai de Cuiabá (MT) a Santarém (PA) e a rodovia que une Manaus (AM) a Boa Vista (RO), além do trecho que liga o Brasil à Venezuela. “Esse corredor vai cortar áreas indígenas, reservas florestais e biológicas, além de servir para escoar a produção agropecuária que nem de longe é a vocação do solo da Amazônia”, resume André Guimarães, do Banco Mundial, um dos financiadores dos projetos federais para desenvolvimento sustentável na região.

Integração? – Os ambientalistas estão preocupados com a integração de dona Mimita ao mercado consumidor. Mas questionam o projeto apresentado pelo governo. Em vez de reconstruir estradas deterioradas que levam o nada a lugar nenhum, por que não investir em novas vias que efetivamente vão ligar as re-giões produtivas. Para ficar num exemplo apenas, o Amapá, embora não seja uma ilha, está completamente isolado do restante do Brasil. Não há uma única via de acesso por terra aos Estados vizinhos ou à Guiana Francesa, país com que faz divisa. Outro pomo de discórdia está na implantação de hidrovias como a Araguaia-Tocantins e a que liga os rios Teles Pires, Tapajós e Amazonas. “Além de servir para auxiliar no transporte de soja, madeira e outros produtos da floresta, essa hidrovia cruza importantes áreas de conservação e reservas indígenas”, resume Iza dos Santos, descendente da tribo indígena tupaiu e secretária-geral do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA).

“Não adianta insistir. A vocação da Amazônia é ser usada como floresta”, enfatiza Adriana Moreira, do Instituto da Amazônia. “Os solos se esgotam depois de três a quatro safras e é necessário investimento pesado em adubo”, diz Adriana. Entre as sugestões de aproveitamento para a região estão ecoturismo, agropecuária familiar, extração de minerais ou frutos e pesca. Outra sugestão é a produção planejada de madeira que preservaria as 41 espécies com risco de extinção, entre elas mogno, ipê, pau-amarelo e cedro. Um dos apelos dos ambientalistas visa a orientar a sociedade para comprar apenas madeira com selo verde, cujas toras saem de florestas com corte planejado.

A necessidade de preservação tem raízes na própria organização da selva, que funciona como um relógio biológico. Diante de um calor que parece não ter limite, a floresta transpira e gera chuvas que são arremessadas longe pela força dos ventos. Essa umidade sempre agiu como barreira natural contra incêndios. Com o alastramento de clareiras, o clima alterou-se e a mata pega fogo com maior frequência. Boa parte das chamas alastra-se pela mata em fogo rasteiro, invisível aos sensores dos satélites. São focos como esse que disseminam incêndios como o que engoliu parte de Roraima há um ano. Além de rever os eixos de desenvolvimento para a região Norte, o governo precisa redefinir a localização das reservas ecológicas planejadas. Criadas para manter a floresta intacta, essas faixas não coincidem com as áreas que os 210 especialistas consideram importantes para a preservação. “Só de olhar para os mapas que resultaram do seminário pode-se ver que é preciso rever tanto os corredores ecológicos como os eixos de desenvolvimento definidos pelo governo”, afirma João Paulo Capobianco, do Instituto Socioambiental. Quem sabe assim dona Mimita não vai precisar de uma peregrinação para ir de sua casa até o mercado a céu aberto, que funciona nas palafitas da margem pobre de Laranjal do Jari, que de bonito só tem o nome.