Minas virou um cassino a céu aberto. Para fazer uma fezinha no jogo do bicho ou apostar as economias em máquinas caça-níqueis, com nomes pomposos como Jackpot ou Tycoon, não é preciso se arriscar na clandestinidade com um “apontador” da zooteca ou viajar para o Paraguai ou Las Vegas atrás de jogos de azar eletrônicos.

Ligada diretamente a Henrique Hargreaves, o todo-poderoso chefe da Casa Civil do governador peemedebista Itamar Franco, a Loteria do Estado de Minas Gerais (Lemg) entrou na onda dos jogos que, com o apoio de políticos de destaque, estão se espalhando pelo País como fichas sobre uma mesa de jogo. Em Minas, o jogo do bicho legal, que leva a marca da loteria mineira, atende pelo nome de Sorteca, onde os “apontadores”, chamados de “agentes”, ganharam uniforme e trocaram os velhos bloquinhos de apontamentos por tecnologia de ponta a serviço da jogatina: pequenos computadores de bolso semelhantes a calculadoras que emitem comprovante da aposta. A última tacada da Lemg foi legalizar as videoloterias, máquinas de apostas que mais parecem fliperamas.

Em menos de um mês, a Mineira, como é conhecida, tirou da ilegalidade e licenciou mais de quatro mil máquinas caça-níqueis que funcionavam clandestinamente em todo o Estado. Pelo menos mais dez mil devem ser “legalizadas” e outras tantas serão importadas nos próximos meses. “Não se pode rotular Minas de cassino. Cassino existe no resto do País todo, onde é clandestino”, justifica Mário Márcio Magalhães, diretor operacional da “Mineira”, que afirma estar fazendo um “ordenamento de mercado”.

Vício – Minas não é o único Estado a legalizar a jogatina nem é o pioneiro. Tudo começou no Estado vizinho de Goiás, que saiu na frente ao lançar seu jogo do bicho high-tech, batizado de Palpiteca. As semelhanças entre a Sorteca mineira e a Palpiteca goiana não são mera coincidência. Há muito mais em comum entre eles do que o modelo da maquininha de apostas: um público ávido pelo bicho, Estados querendo arrecadar e, na maioria das vezes, uma administração peemedebista por trás.

A lógica do bicho legal é simples e lucrativa: uma empresa especialista em software de jogos “inventa” uma máquina coletora de apostas e vende a idéia para o Estado, que cria a nova loteria, idêntica ao jogo do bicho. O que era contravenção ganha fachada legal, o Estado arrecada e todo mundo fatura.

Apesar de a Sorteca já existir, de maneira incipiente, desde o governo anterior, Hargreaves só atentou para o potencial do jogo do bicho oficializado depois de um contato com seu amigo e ex-governador de Goiás Maguito Vilella. O senador do PMDB é amigo de Carlinhos Cachoeira, um dos bicheiros que respondiam pela paternidade da Palpiteca goiana. Carlinhos, Messias Ribeiro e Alencar Junior, ex-campeão brasileiro de automobilismo, deixaram em 1995 uma sociedade suspeita com um grupo de bicheiros do Estado para criar a Gerplan, empresa de fachada que aninha os contraventores goianos e seus negócios.

A Gerplan começou a ficar conhecida no governo de Maguito. Utilizando um software criado para clonar o sistema de apostas empregado no jogo do bicho, Messias, com a empresa Base Tecnologia, e seus colegas da Gerplan fecharam contrato de concessão pública com a Loteria do Estado de Goiás (LEG) e passaram a explorar com exclusividade a Palpiteca. De olho no mercado promissor e tentando limpar a imagem do negócio, na semana passada a LG Cirsa Corporation, gigante espanhola na área de jogos, com um faturamento anual de US$ 1,5 bilhão, assumiu o controle acionário da Gerplan. Quase ao mesmo tempo, Carlinhos Cachoeira abandonou a sociedade com os outros bicheiros.

O motivo do rompimento, por incrível que pareça, foi o sucesso do novo esquema. Messias começou a trabalhar sozinho na expansão do bicho eletrônico para outros Estados, despertando a ira dos colegas.
Além de ter levado a tecnologia do bicho a Minas, Messias tem contatos no Estado de Pernambuco, onde o governador, Jarbas Vasconcelos, também é do PMDB. Lá, o jogo é controlado pela empresa Aval, um consórcio de banqueiros que repassa verbas para o Estado.

Os bicheiros eletrônicos da Gerplan também usaram o modelo goiano para entrar no interior paulista nos últimos anos. Com o apoio das prefeituras locais, ambas comandadas na época pelo PMDB, levaram suas máquinas de aposta para as cidades de Birigui e Araçatuba. Nem se preocuparam em mudar o nome da loteria: Palpiteca.

A Gerplan tentou por último invadir a fronteira do Distrito Federal, onde exploraria a Loteria Social (Lotesi), mas foi denunciada pelo bicheiro Manoel Durso. Manoelzinho, como é conhecido, afirmou que, em troca de doações para a campanha do governador Joaquim Roriz (PMDB), a Gerplan tinha a garantia de poder explorar loteria nos moldes da Palpiteca goiana.

A entrada do grupo de bicheiros goianos em Brasília tem pelo menos um canal óbvio: o secretário da Fazenda de Roriz, Valdivino Oliveira, que ocupava o mesmo cargo em Goiás, no governo de Maguito, quando a Gerplan ganhou o direito de gerenciar o jogo no Estado. Se, em Brasília, eles ainda não conseguiram implantar o esquema, o sucesso de outras localidades faz prever que o grupo tem em mãos um negócio promissor.

Globalização – Assim como a espanhola LG Cirsa em Goiás, são multinacionais do jogo que aparecem oficialmente explorando o bicho eletrônico em outros Estados. A argentina Ivisa, oficialmente de propriedade do empresário Dario Javier Rosenzuit e do consórcio uruguaio Starfield Consulting, é a responsável pela Sorteca mineira e por jogo idêntico no Pará.

A Mineira associa sua Sorteca ao bicho até na publicidade oficial e em seu site na Internet, onde estão listados todos os animais do jogo e seus respectivos números. “A Sorteca é o jogo do bicho. É hipocrisia liberar a Sorteca e o bicho não”, diz o deputado estadual (PDT) Alencar da Silveira Junior, autor do projeto que legaliza o jogo no Estado.

A presença de políticos no esquema é vital. Hargreaves tem sob sua subordinação todo o esquema de loterias. Como ele, políticos de outros partidos começam a também aderir ao processo. A Loteria do Estado do Ceará, do governador tucano Tasso Jereissati, tem contrato com a argentina Tecno Ación para explorar a Loteria dos Sonhos, nos moldes da Sorteca e da Palpiteca. Tocantins quer também entrar na jogatina.

Mas todo o esquema de bicho oficial exportado pelos bicheiros goianos corre risco dentro de casa. Na sexta-feira 1º, o Ministério Público Federal, convencido das inúmeras irregularidades no contrato da Gerplan com a LEG, enviou ao governador tucano Marconi Perillo um ultimato. No relatório, os promotores Spiridom Nicofotis Amyfantis, Humberto Machado de Oliveira e Abrão Amisy Neto pedem o cancelamento imediato do contrato. A empresa registrou “laranjas” como proprietários para esconder a sociedade dos bicheiros. O governador Perillo pode cancelar o contrato esta semana, o que seria um golpe mortal em todo o esquema. Políticos influentes têm trabalhado pela manutenção do contrato, entre eles os deputados federais Pedro Canedo e Joviar Arantes, que trocaram o PMDB pelo PSDB goiano.