Vultos desceram das montanhas e foram de casa em casa, deixando pequenos embrulhos na soleira das portas. Momentos depois, fuzis cuspiram fogo. Rajadas de M-16 eram disparadas na direção das humildes construções de barro com telhados de palha. Bernardete Joaquina, apavorada, correu para fora da casa. No escuro, não percebeu e pisou em seu presente: uma mina pessoal.

A explosão destroçou seu pé. Sem dinheiro para pagar o médico do hospital público, o atendimento demorou. Demorou tanto que, ao chegar, teve de amputar a perna direita, apodrecida. Isso foi em 1998, em Huambo, re-gião central de Angola. Hoje, aos 21 anos, Bernadete vive com sua filha recém-nascida no Centro de Refugiados da ci-dade de Benguela, a 500 quilômetros da capital Luanda. Ela e mais quatro mil pessoas se amontoam em uma antiga escola transformada em uma favela. A guerra civil angolana está para completar 25 anos com números assustadores: mais de 1,5 milhão de pessoas foram mortas (a população é de 12 milhões) e quase o dobro disso está refugiado dentro e fora dos 1.246.700 km2 de território – tamanho do Estado do Pará.

Angola tem a maior população mundial de amputados, índice que tende a aumentar, uma vez que 20 milhões de minas terrestres ainda estão em seu solo. E o comércio dessas minas acontece a céu aberto, como na feira livre conhecida como Roque Santeiro – batizada depois do sucesso da novela brasileira. Na Roque, por US$ 10 leva-se uma mina.

Assim como em Benguela, outras cidades transformaram-se em depósitos de fugitivos. Os angolanos chegam a caminhar 400 quilômetros fugindo das balas para morrer de tuberculose, cólera e malária em campos de refugiados. Quando não é doença, definham de fome: 17% das crianças morrem antes de completar um ano. Comboios de comida são a única esperança para milhares de pessoas. Isso se conseguirem escapar dos ataques das forças da União Nacional para a Libertação Total de Angola (Unita), o exército rebelde comandado por Jonas Savimbi, que briga pelo poder nas mãos do presidente José Eduardo dos Santos, do Movimento para a Libertação de Angola (MPLA) desde 1975.

Assim como Bernadete, Simão Francisco Cabanda, ex-combatente das Forças Armadas Angolanas, também foi vítima de uma mina em 1986. Por falta de socorro, ele amputou a perna. Recebia uma pensão de R$ 2 por mês. Há três anos não recebe nada. Em 1993, mudou-se com a família e mais 45 mil pessoas para um campo de refugiados na província de Bengo e hoje trança tapetes de palha para sobreviver. “Fala-se de ajuda, mas ela nunca vem. Enquanto isso, há pessoas em Luanda enchendo os bolsos à custa do nosso sofrimento.”

Quem passa pelo interior do país duvida que o governo esteja investindo os prometidos 8,7% em educação e saúde. “O governo desistiu da população”, desabafa um médico brasileiro que não quis se identificar. “A sensação é de impotência. Quanto mais você trata, mais morre gente.” E são as Organizações Não-Governamentais que tentam conter esta catástrofe humanitária. Hans Vikoker, coordenador do Programa Alimentar Mundial, afirma que é um trabalho sem perspectivas.“O governo me dá arrepios!”

Na capital Luanda, o porão de um prédio serve de abrigo a centenas de refugiados da província de Moxico. O ar é quente, úmido, estagnado – ideal para a tuberculose, que ataca boa parte dos moradores. E, como não há saneamento básico, as necessidades são feitas dentro de latas nos próprios cômodos e depois jogadas na rua. Judas João Ndungo, coordenador do centro de refugiados, há 14 anos vem pedindo ao governo uma área ao ar livre para eles se estabelecerem. A resposta: “Por indisponibilidade financeira não estamos em condições de atender às reivindicações.” E, por ironia, uma torre gigantesca de milhões de dólares está sendo erguida em Luanda para servir de mausoléu ao ex-presidente e líder da independência, Agostinho Neto.

Guerra lucrativa – Apesar do ufanismo governamental, infelizmente, não há perspectivas para o fim da guerra. Nestas duas décadas, ambos os lados perderam e ganharam posições. A Unita já chegou a ser dada como morta, para depois abocanhar 75% do território. As principais cidades e a faixa de litoral, que vai de Cabinda a Namibe (Norte ao Sul do país), continuam sob poder do presidente José Eduardo dos Santos. E isso significa o controle de uma das maiores jazidas de petróleo do mundo. Exxon, Elf, Chevron, Shell e outras companhias, inclusive a nossa Petrobras, firmaram contratos com o governo e exploram essas jazidas. A quantidade é tamanha que o preço do óleo diesel é de 220 mil kwanzas renovados (cerca de R$ 0,10).

A maioria desses petrodólares financia a guerra do lado do governo. O orçamento militar é complementado pela renda da exportação de diamantes, ouro, ferro e outros minerais. A Unita controla a maior parte das áreas de diamantes. Em tese, há um boicote internacional que proíbe o comércio com o exército rebelde. Na prática, essas pedras continuam a ser exportadas, embarcando em pistas de pouso na Zâmbia. O narcotráfico também tem servido à Unita na compra de armamentos. Uma rota que sai da Colômbia, passa pelo Brasil, chega a Angola e África do Sul, rumando então para a Europa.

Os dois lados têm cacife para bancar os anos que forem necessários para chegar ao poder nesse país rico em recursos minerais. Com o fim da guerra fria, foi-se o tempo em que a disputa era ideológica entre os socialistas do MPLA e os capitalistas da Unita. De olho na estabilidade do comércio (60% da produção de petróleo é exportada para os americanos), os EUA apóiam o governo. A luta, de velha, perdeu a bandeira. Hoje, os dois grupos buscam o poder pelo poder. Já foram três acordos de paz fracassados. No último, em Lusaka em 1994, o Brasil mandou o seu maior contingente militar em missões internacionais. Dois mil brasileiros foram envia-dos para a manutenção da paz, que durou muito pouco.

A guerra tornou-se lucrativa para os dois lados. Denúncias de corrupção cobrem o governo até o pescoço: superfaturamento na compra de armamentos, na construção de infra-estrutura militar, no favorecimento de grupos ligados ao Exército. De acordo com dados do Ministério das Finanças, de 1992 a 1996, 34% do orçamento foi utilizado na área de defesa e ordem pública. E o Brasil está na lista dos que vendem armas.

Brasil – Angola é um importante parceiro comercial para o Brasil. E é significativa a exportação de nossos produtos, que vai de frangos congelados a automóveis. Exportamos também tanques de guerra e aviões da Embraer – de passageiros a militares. O modelo tucano foi adquirido para treinamento militar de pilotos. Isso irritou as tropas de Savimbi que acusam o governo brasileiro de ser conivente com esse treinamento. O Itamaraty nega qualquer envolvimento.

No início de outubro, a Unita divulgou que os “interesses brasileiros em Angola” tornavam-se alvos a serem destruídos. Todo cuidado agora é pouco. A segurança no vôo Luanda-Rio de Janeiro das Linhas Aéreas Angolanas foi redobrada. A mensagem da Unita atingiu em cheio a empreiteira baiana Odebrecht, empresa responsável por obras de estradas e barragens, além de extração de diamantes no interior do país. A presença da Odebrecht em território angolano também não agrada a Jonas Savimbi.

O ódio vem de longe. O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência angolana e a legitimidade do governo do MPLA. Tropas brasileiras foram enviadas em 1995 para fazer parte da força de paz das Nações Unidas. E, ainda hoje, no plenário da ONU, nosso país apóia as ações do governo de José Eduardo dos Santos.