Um pátio lúgubre de campo de concentração, limitado por postes e cercas de arame, aparece mergulhado numa noite perdida no tempo. Basta, no entanto, o primeiro contato com o cenário de Fragmentos troianos, nova peça dirigida por Antunes Filho – que depois de uma ausência de três anos reinaugura o Teatro Sesc Anchieta, em São Paulo -, para o espectador se envolver em mais um espetáculo polêmico de um dos maiores renovadores dos palcos brasileiros. Trata-se de uma adaptação de As troianas, de Eurípedes (485 – 406 a.C.), com a devida assinatura Antunes Filho, primeira tragédia grega que o diretor paulistano de 69 anos monta em mais de quatro décadas de carreira. Mas existem poucas referências à Grécia antiga além dos personagens, a maioria mulheres nobres, sobreviventes da guerra de Tróia, tornadas prisio-neiras pelos guerreiros inimigos. O elo visual mais direto com os tempos heróicos resume-se ao grande painel de fundo, que mostra a deusa Palas Atena sobrevoando a Acró-pole com seu manto de morte. Mesmo assim, trata-se de uma citação à série Lilith, do pintor alemão Anselm Kiefer, que retratou São Paulo como uma cidade morta. Trazendo soldados de saias, cobertos por longos capotes de talhe germânico, e viúvas vestidas de negro como típicas muçulmanas de Kosovo, Fragmentos troianos, na verdade, relembra uma sucessão de genocídios mais recentes – o dos judeus, dos Bálcãs e os que pipocam nas grandes cidades brasileiras e no interior do País. Foi esta a forma que Antunes escolheu para saudar de forma incômoda o novo milênio, incluindo no espetáculo um desfecho irônico, embalado por uma canção natalina. “É um manifesto. Quis mostrar o que o homem anda fazendo com a História, as tragédias que têm havido neste século”, afirmou o diretor a ISTOÉ, numa fala mansa, pontuada de risos amargos que trazem à tona sua reflexão sobre a humanidade.

Num dos ensaios gerais com a trupe do Centro de Pesquisa Tea-tral (CPT), semana passada, a estatura alta e dominadora do diretor polarizava todas as atenções. Mesmo no momento dos ajustes finais ele ainda fica em ebulição. Movimenta nervosamente os longos braços pedindo correções na luz, nos truques da imensa esfera que desce do teto simbolizando o deus Poseidon ou simplesmente no jeito como o elenco masculino amarra um cachecol. “Arrume isto, está mais parecido com um árabe”, pede a um dos atores que encarnam os soldados gregos-germânicos-sérvios.

Em ação no controle de todos estes elementos, o encenador confirma a lenda de personalidade difícil e ranzinza. Diante do resultado no palco, contudo, vê-se do que seu perfeccionismo é capaz. Com pouco mais de uma hora, Fragmentos troianos conta de jeito enxuto e em imagens de grande beleza a espera das viúvas troianas, que aguardam humilhadas o momento do embarque para a Grécia como escravas. Sob um aterrorizante som de sirene, o cortejo de mulheres adentra a cena carregando malas. Do coro logo se destaca a velha Hécuba (Gabriela Flores), viúva do rei Príamo, acompanhada da nora Andrômaca (Sabrina Greve).

Segura no papel de Hécuba, Gabriela, revelação de 25 anos, aparenta 60 auxiliada apenas pela voz e pela postura corporal. O trabalho impressiona tanto que em Istambul, na Turquia, onde o grupo se apresentou em junho passado, as pessoas sempre perguntavam pela velha. “Dos dois anos de preparação, pelo menos um e meio foi trabalhando a voz”, lembra a atriz. Por causa de exigências técnicas deste tipo Antunes nunca havia arriscado dirigir os trágicos gregos. “Sempre que vou a uma tragédia vejo todo mundo gritando e não entendo nada”, explica. “Há muito tempo queria fazer uma, mas nunca senti que tinha elenco apto.”

A idéia de montar Fragmentos troianos surgiu em 1993 com o massacre da Candelária, no Rio de Janeiro. De lá para cá, ele montou o divertido Drácula e outros vampiros. Tão logo terminou a temporada, mergulhou na pesquisa do novo espetáculo. Enquanto sua trupe se exercitava sem ele numa outra proposta de dramaturgia com o espetáculo de câmara Prêt-à-porter, cenas independentes eram criadas a partir de fotos de campo de concentração, massacres dos sem-terra e outras referências. Algumas delas, como a das mulheres enfrentando os guardas munidas apenas de pratos e colheres de alumínio, dão frio na espinha. Antunes Filho considera esta a sua maior direção. Pela força com que retrata o horror das guerras e das matanças inocentes, Fragmentos troianos pode ser considerada a sua Guernica.