Fernando Gabeira tinha acabado de chegar do exílio. Era o final dos anos 70, década em que no Brasil a liberação dos costumes contraditoriamente convivia com as mais pesadas consequências da ditadura. Para comemorar sua volta ao País, o hoje deputado federal pelo PV carioca armou um verdadeiro circo. Apareceu na praia de Ipanema cobrindo o corpo magérrimo com uma minúscula tanguinha de crochê. Como todo mundo ficou sabendo, o gesto ganhou a aura de símbolo definitivo da abertura política. Mas o que poucos têm conhecimento é que a tão comentada tanguinha lilás e verde, na verdade, não passava de uma calcinha de biquíni emprestada de sua prima, a apresentadora de televisão Leda Nagle. Passagens saborosas como esta já valem a leitura de Ela é carioca – uma enciclopédia de Ipanema (Companhia das Letras, 451 págs., R$ 33,50), novo livro do jornalista Ruy Castro, um mineiro de Caratinga que parece ter tomado para si a responsabilidade de (re)contar a história do Rio de Janeiro e que já brindou os leitores com alentados retratos da bossa nova, em Chega de saudade, do jogador Garrincha, em Estrela solitária, e do dramaturgo, escritor e jornalista Nelson Rodrigues em O anjo pornográfico.

Para fazer o perfil de um dos bairros mais badalados do País, durante dois anos Castro pesquisou jornais e revistas desde as primeiras décadas do século, entrevistou mais de 120 pessoas e leu cerca de 200 livros. O esforço resultou nos 231 verbetes que compõem o livro que conta a evolução de Ipanema através de seus moradores e suas histórias. Assim, fica-se sabendo que Cazuza e o diretor de teatro Gerald Thomas, quando crianças, já andavam com o artista plástico Hélio Oiticica; que o multifacetado Millôr Fernandes é um dos inventores do frescobol; ou que a socialite Ionita Salles Pinto introduziu o pareô nas areias famosas.

Ipanema nasceu marcada para ser o que foi. Muito antes da saborosa Rose di Primo – a criadora da tanga -, da revolucionária Leila Diniz desfilar sua barriga de grávida ou de mulheres como Elisabeth Gasper, Tônia Carrero e Tania Caldas enlouquecerem os homens, já em 1915 a bailarina americana Isadora Duncan nadava nua em suas águas. É um passado que também reserva espaço para o genial compositor Ernesto Nazareth, que, já famoso, para lá se mudou nos anos 20 porque não podia nem comprar um piano. Mesmo motivo que fez a família de Tom Jobim chegar ali na mesma época, abandonando a então aristocrática Tijuca. A virada do bairro se deu quando a praia foi invadida por europeus refugiados. Apesar de não terem dinheiro, eram cultos, amigos de artistas e familiarizados com idéias vanguardistas. No Arpoador, pela primeira vez pescadores e intelectuais passaram a conviver. Era um denominador comum que unia figuras solares.

Em entrevista a ISTOÉ, Ruy Castro explica que só não foi autopersonagem de seu livro porque mantinha um relativo distanciamento daquilo tudo que ocorria à sua volta. “E também não era da turma da bossa nova ou amigo do Mané Garrincha.” Mas no dia 23 de março de 1968, na mesma hora em que o estudante Edson Luiz de Lima Souto, 16 anos, era morto a tiros no restaurante universitário Calabouço, Castro, então um jornalista de 20 anos, estava bebendo um chopinho com Tom Jobim no Veloso, famoso bar de Ipanema. O mesmo onde anos antes Tom e Vinícius viram passar a bela Heloisa Eneida, 19 anos, inspiração para a música Garota de Ipanema. Curioso é que a menina só soube da homenagem dois anos mais tarde, quando a canção ganhou o mundo. À época chegou, inclusive, a recusar um pedido de casamento feito a sério por Tom, que lhe dedicou os seguintes versos: “Oh, minha eterna Heloisa/sou teu constante Abelardo/tu és musa perfeita/e eu teu constante bardo/venha depressa, Heloisinha/ quem te chama é o Tom Jobim/te espero na mesma esquina/já comprei o amendoim.” A recusa fazia sentido. Tom era casado e, ainda por cima, estava de aliança. Mesmo assim, a futura Helô Pinheiro, um ano depois acabou convidando-o para ser seu padrinho de casamento com o empresário Fernando Pinheiro.

Helô foi um ícone do bairro que democraticamente abrigou estrelas de todos os firmamentos. Entre elas o líder comunista Luiz Carlos Prestes, que em Ipanema montou seu primeiro “aparelho” ao lado da companheira Olga Benario, e nada menos que três presidentes da República, Juscelino Kubitschek e os generais Eurico Gaspar Dutra e Humberto Castello Branco. Lá também morou a cantora Dolores Duran – dizia-se que “de dia ela era Ipanema e de noite Copacabana” -, assim como o baiano João Gilberto, que não mereceu um verbete porque jamais atravessou a rua e entrou num bar, nem sequer para comprar uma caixa de fósforo, como afirma o autor de Ela é carioca. “Eu não podia repetir a fórmula que utilizei em Chega de saudade, cuja estrutura comparo a um desfile de escola de samba, em que as primeiras 200 páginas correspondem à concentração. Uma zona absoluta, que quem vê não consegue imaginar se vai dar certo”, explica. Com a história de Ipanema seria bem mais complexo. Exatamente por isso Ruy Castro optou pela forma de verbetes. E só debruçando um pouquinho que seja sobre as delícias de cada um é que é possível um ligeiro vislumbre de tanta vertigem.