Na terça-feira 16, uma equipe de cinco dos mais rigorosos fiscais da autarquia embarcou em Brasília com destino a Curitiba. Tinham como tarefa produzir uma devassa na contabilidade guardada no número 371 da rua José Loureiro, no centro da cidade. Ali, desde 1997, trabalham os liquidantes do Banco Bamerindus, que tentam fechar o que restou da instituição agonizante vendida ao inglês HSBC. Também dali, de autoria de um dos sete funcionários aposentados do BC, nomeados para serem os responsáveis por recebimentos e pagamentos milionários, saiu uma carta anônima dirigida ao ministro da Fazenda, Pedro Malan, e ao presidente do BC, Armínio Fraga. Em dez páginas, seu autor demonstra total familiaridade com o dia-a-dia da liquidação, seus desvios e pecados. Fala da personalidade de alguns e denuncia a omissão de outros. Cita tantos casos que acaba por acusar a existência de uma “máfia de liquidantes” no Banco Central. Gente que se aproveita do negócio milionário das massas falidas para montar esquemas e desviar dinheiro. No caso do Bamerindus, um buraco negro que chega a R$ 7 bilhões. Os detalhes descritos na carta, à qual ISTOÉ teve acesso, fizeram o BC rasgar a lei e, pela primeira vez em sua história, abrir um inquérito formal a partir das denúncias de um acusador oficialmente desconhecido.

HSBC lucra – O que logo chama a atenção na carta, além do tom enervado, é a promiscuidade descrita sobre a relação entre os liquidantes do definhado Bamerindus e os executivos do gigante internacional HSBC. Depois de ser beneficiado pelo Proer e por outras concessões feitas pelo governo federal, o banco inglês continua tirando boa parte de sua rentabilidade no Brasil das operações com o que restou do Bamerindus, já que foi contratado pelo BC para prestar serviços de cobranças dos créditos podres e negociação de acordos judiciais da massa falida. Por conta disso, recebe R$ 2,1 milhões mensais. Ganha por um trabalho que pode beneficiá-lo. Se acabar logo com as reclamações trabalhistas, por exemplo, embolsará definitivamente os R$ 240 milhões que lhe foram adiantados pelos próprios liquidantes no ano passado para quitar essas pendências. Caso contrário, terá de devolver o dinheiro, com juros acumulados. São quase dez mil ações judiciais que, segundo a denúncia recebida pelo BC, estão sendo aprovadas sem nenhum rigor, a toque de caixa. Com um detalhe: acordos envolvendo indenizações inferio-res a R$ 1 milhão podem ser fechados pelo HSBC sem consultas ao liquidante.

Nos negócios imobiliários entre o HSBC e o Bamerindus, a situação não é diferente. As 200 agências vendidas pelo Bamerindus ao banco inglês agora estão sendo revendidas com lucro pelo HSBC. O liquidante do Bamerindus, Gilberto Loscilha, reclama que “o mercado não está receptivo”. Mas o HSBC tem feito transações melhores que as dele. No Centro Cívico, em Curitiba, por exemplo, o HSBC pagou ao Bamerindus R$ 940 mil por um dos melhores pontos da cidade. Depois o revendeu por R$ 1,2 milhão, com lucro de R$ 260 mil. Pudera. É o próprio HSBC que define o preço que vai pagar pelos imóveis adquiridos. “Tentamos manter os controles, mas há milhares de operações sendo fechadas todos os dias”, queixa-se Loscilha.

O caxias – O ambiente no Bamerindus é de tensão constante e desconfiança mútua. Em sua defesa, o liquidante lavou as mãos pelos pequenos deslizes dos colegas. Numa carta enviada ao diretor de Fiscalização do BC, Luiz Carlos Alvarez, Loscilha admitiu, por exemplo, que o assistente Antônio Toledo andou prestando serviços a outras empresas, entre elas a corretora Fortuna, a distribuidora Divalpar e a Barigui S/A. Toledo deveria estar trabalhando com exclusividade no Bamerindus, pois é dele a maior responsabilidade por pagamentos e recebimentos no banco em liquidação. Antes da denúncia, o próprio Loscilha foi flagrado prestando consultoria jurídica ao Bamerindus, em Curitiba, e ao BMD, em São Paulo, simultaneamente. Quando soube do duplo expediente, o comando do BC determinou seu desligamento do BMD.

Pressionados, os acusados apontam o assistente Luiz Carlos Barbeiro como o gatilho que disparou contra eles. Funcionário recém-aposentado, Barbeiro é um dos mais respeitados fiscais do BC, tratado por todos na instituição como um típico caxias. Coincidentemente, trabalhou na única intervenção que o BC fez em uma de suas liquidações. Foi no final dos anos 70, na Ideal Financeira, onde os então liquidantes estavam cobrando propina para pagar dívidas já reconhecidas. “Sou muito amigo de Alvarez e se tivesse de dizer alguma coisa teria dito diretamente a ele”, esquiva-se Barbeiro. As evidências de que ele é o autor, entretanto, são muitas. A começar pelo fato de que Barbeiro é o único elogiado na carta anônima. “Pensei em demiti-lo. Mas outros colegas me convenceram em não fazer isso”, conta Loscilha, irritado com a punhalada que recebeu. Nas últimas semanas, o liquidante tem trabalhado sob efeito de tranquilizantes para não perder o controle. “Os fiscais do BC são muito rigorosos. Podem até encontrar alguma coisa.”

Gigante podre – O trabalho, entretanto, não será fácil. A inspeção do BC vai mergulhar numa floresta densa e fechada. Atualmente, o banco podre chamado Bamerindus é um dos 30 maiores da América Latina – considerando-se apenas os ativos. Há R$ 2,6 bilhões em créditos para pagar dívidas de R$ 7 bilhões. São dois mil imóveis espalhados por todo o País e nada menos de 95 mil créditos a receber. A devassa atingirá o trabalho dos três liquidantes que já estiveram à frente do banco: Gilberto Loscilha, Flávio Siqueira e o próprio Luiz Carlos Alvarez, atual diretor de fiscalização do BC e o primeiro dos liquidantes. Para Alvarez, será uma boa oportunidade de recuperar o prestígio, em queda livre no conceito do presidente Armínio Fraga. Para a fiscalização do BC, acostumada a investigar falcatruas no sistema financeiro, será um bom pretexto para começar a pungir suas próprias feridas.

“Estão querendo me derrubar”
Mãos trêmulas, semblante tenso, Gilberto Loscilha sabe que está no olho de um furacão chamado Bamerindus. Há seis meses no cargo de liquidante, o procurador aposentado do BC não tem tido tranquilidade para tocar seu trabalho. “Isso aqui parou por causa das denúncias”, diz o advogado, que enfrenta uma esofagite (inflamação do esôfago) e mantém-se de pé à base de quatro comprimidos de Lexotan por dia.

ISTOÉQuem escreveu a carta com as denúncias?
Gilberto Loscilha – Só alguém aqui de dentro conheceria todas aquelas minúcias. Algumas pessoas da delegacia do BC em Curitiba ficaram aborrecidas com a minha vinda. É alguém querendo me derrubar.
ISTOÉ De quem é a responsabilidade pelas possíveis irregularidades?
Loscilha – Tudo o que acontece na liquidação é de responsabilidade do liquidante.
ISTOÉ Apesar disso, quem toca a liquidação é o HSBC?
Loscilha – Todos os créditos são cobrados pelo HSBC. O controle das ações judiciais e a administração dos imóveis também é feito pelo HSBC. Quem negocia com os advogados é sempre o HSBC. É uma liquidação compartilhada.
ISTOÉ O sr. acha que ganha pouco (R$ 8 mil) para dirigir uma liquidação desse tamanho?Loscilha – Acho. Mas ser liquidante é uma aspiração, há poucos em condições de executar esta tarefa. E dá status.
ISTOÉ O sr. chegou a pedir demissão?
Loscilha – Não. Se pedisse, estaria admitindo que existe alguma coisa. E esses atos todos são anteriores à minha gestão, são da época do Flávio Siqueira.