A paulista Maria Elisa Pinheiro Gibsone, mais conhecida como May East, tem todas as credenciais para constar do Guinness, o livro dos recordes. Foi a primeira mulher do mundo a se casar dentro de um barril de uísque. Mas isso não é nada, se comparado ao fato de os partos de suas duas filhas terem acontecido dentro do mesmo barril – um deles, aliás, imerso numa pequena piscina. O enorme barril reciclado, que durante décadas abrigou cerca de 600 mil litros da aguardente, é hoje a moradia de May e de seu marido, o australiano Craig Gibsone, na Comunidade Fundação Find-horn, no Norte da Escócia. Reconhecida como uma ONG pelas Nações Unidas, Findhorn se apresenta como “um centro de educação e transformação pessoal no qual as pessoas se tornam mais conscientes de seu trabalho e relacionamentos e resgatam o contato com a natureza.” Aos 42 anos, May – que já foi cantora pop, compositora, defensora dos direitos indígenas e do meio ambiente – abraçou no início dessa década uma vida mais voltada à meditação, ao autoconhecimento e ao contato com a natureza. Embora continue inquieta. Como uma das principais figuras da comunidade, viaja pelos quatro cantos do planeta para fazer palestras e organizar seminários. E ainda arruma tempo, pelo menos duas vezes por ano, para ir ao Brasil rever os parentes e dar aulas na Universidade Holística de Brasília. “Sou dupla aquariana, procuro estar sempre na vanguarda dos movimentos”, diz.

Disso não há dúvida. Em meados da década de 70, quando era aluna de Sociologia na PUC de São Paulo, participou do movimento estudantil contra a ditatura militar. Nessa mesma época, teve uma breve passagem por IstoÉ, como revisora. Em seguida, decidiu se aventurar por Nova York. Foi lá que o “May”, apelido que tinha desde criança, ganhou o complemento East. “Toda a minha turma morava no West Side e apenas eu ficava no East”, explica.

Eram tempos nos quais a devastação da floresta amazônica era assunto de destaque e May resolveu dar um tempo na música, se radicou em Londres e passou a trabalhar com ONGs de defesa do meio ambiente. Foi nessa época que cruzou o caminho do australiano Craig. Da amizade à vida comum no barril, foi tudo uma questão de tempo.

A idéia de se usar barris como moradias surgiu em 1982, quando a Fundação Findhorn promoveu a conferência Construindo uma Vila Planetária, com o escultor, arquiteto e idealista americano James Hubbel. Ele projetou um modelo de ecovila para a comunidade que mais parecia um cenário do filme Star trek, com estruturas parecidas com cavernas espetadas no solo. A idéia de Hubbel nunca vingou, mas inspirou um dos moradores, Roger Doundra, a usar os barris para o início de uma ecovila. Ele comprou no ano seguinte seis barris de pinho desmontados de uma destilaria escocesa. Com a ajuda de voluntários, construiu em 15 meses a primeira casa-barril de Findhorn. Em 1989, foi a vez de Craig erigir o seu que, com sete metros de diâmetro, abriga uma sala na parte inferior, uma cama na parte de cima, banheiro e ainda uma sala de estudos. Mas como a família cresceu, foi necessário anexar outro barril. Hoje, a moradia dos Gibsone consiste em sala, dois quartos, banheiro e uma cozinha. Eles querem expandir ainda mais e aguardam permissão das autoridades locais para posicionar um terceiro barril. “Tudo aqui foi reaproveitado, reciclado, com exceção do tapete da sala”, conta Craig. O ambiente dentro da casa é muito agradável, com aquele tipo de aconchego que apenas as moradias de madeira proporcionam. E, é bom ressaltar, não cheira a scotch. “A menos que você corte a madeira. Aí sim vem aquele cheiro gostoso”, explica Craig, 58 anos, que bebe “moderadamente”. Já May, “nem pensar”.

Os cinco barris construídos a poucos metros do gélido mar do Norte são, na realidade, apenas uma pequena parte da comunidade experimental que não pára de crescer desde que a Fundação Findhorn foi criada em 1963 pelo casal Peter e Eileen Caddy e sua amiga Dorothy Maclean num acampamento de trailers com o objetivo de propagar uma “filosofia de amor incondicional”. A fama do lugar foi alavancada quando o trio conseguiu cultivar hortas e pomares num terreno arenoso. Eileen, aos 82 anos, é a única que ainda vive na comunidade – Peter faleceu e Dorothy reside nos Estados Unidos. Cerca de dez mil pessoas de 40 países visitam o local anualmente, participando de cursos, seminários ou apenas por curiosidade. Cento e cinquenta pes-soas moram dentro da fundação e outras 300 residem nas cercanias. Além dos cursos, que geram cerca de 80% da receita anual de aproximadamente US$ 2 milhões, a comunidade possui 40 micro e pequenas empresas na área de construção, alimentação, cerâmica, tecelagem e até uma fábrica de painéis solares. Para se filiar à fundação, é preciso parti-cipar de um curso pago com duração de um ano que combina palestras e trabalho voluntário.

Sem drogas – Cada membro efetivo, terá casa, comida e um salário mensal de cerca de R$ 500. Se tiver uma poupança, poderá construir uma das belas casas de madeira, 100% ecológicas, projetadas pela fundação. A exemplo dos barris, há outras construções alternativas, como casas com gramados no teto. Mas a maioria dos habitantes da vila ainda reside em trailers nada ecológicos. Há outros brasileiros por lá. “Vim aqui há cerca de um ano para conhecer e resolvi não retornar”, diz a arquiteta paulista Cláudia Prado.

Engana-se quem pensa que Findhorn é mais uma daquelas comunidades ripongas, onde rola solto drogas e sexo livre. Ao contrário, ajusta-se mais na categoria comunidade-família. Por exemplo: nas cerca de 30 horas que a reportagem de IstoÉ perambulou pela área, não foi possível rastrear nenhum traço de maconha ou haxixe sendo consumidos. E note-se que havia uma conferência com cerca de 300 pessoas de todo o mundo no “Salão do Universo”, uma espécie de anfiteatro do lugar discutindo maneiras de solucionar conflitos de todos os tipos. A relação com a natureza e o respeito pela terra são lemas básicos. Cerca de 60% da comida orgânica servida no refeitório da comunidade é cultivada na área. Recicla-se de tudo. Não existe também uma religião dominante. Tudo é permitido no peculiar sincretismo de Findhorn: catolicismo, budismo, sufismo, cristianismo celta etc. “Cada um respeita a opção do outro”, explica May. Há alguns “santuários” espalhados pelo local. Um deles, um buraco no solo bem próximo ao barril de May, lembra uma trincheira da Segunda Guerra Mundial. Perto dali, uma taba de índio.

Quando não está viajando, May se dedica às filhas – Inanna Mei, seis anos, e Ki Utara, cinco -, cuida da horta e cumpre suas tarefas comunitárias. “Procuro aprofundar também o meu trabalho com o feminismo espiritual, ou ecofeminismo.” Como uma das oito “Confiáveis” de Findhorn – uma espécie de conselho deliberativo -, é uma das líderes do lugar. Nas horas de folga, toca o seu sandawa pitagórico, instrumento musical astronômico e matemático. Já Craig é mestre no didgeridoo, instrumento de percussão dos aborígenes australianos. Televisão é um item proibido no barril. “Não gosto. Sobretudo no Brasil, presta um desserviço às crianças.” A carreira musical foi colocada de lado, mas ela gravou recentemente com outras pes-soas da comunidade um CD. Enfim, apesar do barulho infernal de uma base da RAF ironicamente situada na vizinhança, a vida em Findhorn é calma e previsível. Será que a incansável May East se acomodou? “Sou feliz, mas não sinto que Findhorn seja o fim da estrada para mim”, confessa a dupla aquariana.